UM CONTO INFANTIL SETE

AMARILDO E JOSÉ

Amarildo e José são vizinhos. Ambos moram no centro de São Paulo. O primeiro mora na Rua Vieira de Carvalho com o Largo do Arouche. O segundo, na mesma rua, um pouco mais abaixo, no seu final com a Praça da República. José é jovem e mora sozinho. Amarildo tem seus cinqüenta e poucos anos, aparentemente, pois ninguém ainda teve coragem e ousadia para abordá-lo e perguntar-lhe a sua verdadeira idade. Mas também mora sozinho. Pode-se dizer que Amarildo e José possuem bastante experiência no ramo da improvisação imobiliária, a dizer pelos caixotes e panos que fazem as vezes de barracos, mas que para as suas necessidades, são verdadeiras mansões. Como pedintes, os dois também não deixam a desejar, posto que conseguem com os transeuntes e vizinhos tudo quanto necessitam, seja alimento, roupa, cigarro e até cachaça. Mas a sua principal fonte de renda é com a venda de papelão que recolhem nas ruas do centro durante o dia e vendem no final da tarde pela quantia de noventa centavos o quilo. Com apenas alguns cálculos, é possível imaginar que cada um recolhe até oito quilos de papelão por dia. Conclui-se que eles sobrevivem com mais de cem reais cada um; e ainda com a vantagem que não pagam aluguel nem condomínio, água ou luz. Não têm gastos extras com educação ou saúde. Ou seja, usam o salário para gastar com o seu próprio entretenimento. As noites estreladas, algumas, servem de cenário para o diário passeio noturno que Amarildo e José fazem ao Largo do Arouche e Praça da República, respectivamente. Só lá pela uma da madrugada, quando o sono chega, vão dormir em seus cantos, para no dia seguinte acordarem às sete da manhã, com o sol lhes aquecendo as faces – quem não quer acordar assim – e seguirem seus caminhos ao trabalho. Apesar de tudo isso, Amarildo e José, contrariando os sentimentos que normalmente se tem com uma boa qualidade de vida, não estão satisfeitos. Muito pelo contrário. Vivem bastante queixosos sobre a vida exaustiva e injusta que levam. O que não se pode compreender inteiramente. É certo, pois, que são moradores de rua e isso, por si só, já carrega uma carga de preconceito social contra as suas figuras representativas. Por outro lado, José e Amarildo não passam fome nem frio, não têm contas a pagar ou questões complexas e filosóficas a resolver. Certa noite, o passeio noturno de José e Amarildo foi interrompido bruscamente por uma chuva de fazer alagar o Vale do Anhangabaú. Soube-se depois que a quantidade de água nem era tão grande assim, mas o acúmulo de chuva foi devido à enormidade de lixo jogado nas ruas. E para isso contribuíram José e Amarildo, quando descartaram caixas de papelão que não mais lhes prestavam.
A chuva precipitou-se para o Largo do Arouche. Amarildo teve seus pertences inutilizados. Os objetos e bens pessoais de José, por sua vez, foram ensopados, posto que a água invadiu a sua residência. Conclusão. Os dois estavam desabrigados. Por onde iam, a chuva os castigava. Era tanta água que nem ficaram tão enraivecidos assim. Precisavam de um banho e viram ali a oportunidade perfeita para fazê-lo. Mas também tinham que dormir. E a tempestade não parava. E as calçadas com lagos enormes e poças de água suja. Amarildo pegou suas poucas coisas que ainda não tinham sido destruídas e seguiu em direção à Praça da República. José fez o caminho inverso, mas pelos mesmos motivos. Foi em direção ao Largo do Arouche para procurar um abrigo que lhe protegesse da chuva. Quando chegaram, juntos, à altura do número cem da Rua Vieira de Carvalho, encontraram um toldo embaixo do qual poderiam ficar por algumas horas até que a chuva diminuísse, ao menos. Infelizmente, o toldo tinha apenas um metro e meio de extensão por quarenta centímetros que invadiam a calçada por cima da cabeça dos transeuntes que ali passavam. Amarildo colocou seus pertences na pequena porção seca de calçada que havia. José não se fez de rogado. Usou o mesmo espaço para colocar as suas coisas. Seus olhares se cruzaram e permaneceram inertes por um longo tempo. Ao seu redor, o mundo caía; a chuva castigava e dominava. Mas algo de comum um percebeu no outro, uma certa auto-piedade de suas figuras, coragem e força descomunal para suportarem dignamente toda aquela situação. Era como se Amarildo, ao mesmo tempo, tivesse concordado que José ficasse lá, mas o tivesse expulsado. A sobrevivência de ambos dependia de ocasiões como essas; decisões rápidas e que, na sua maioria, traziam vantagens ou desvantagens imediatas. No caso, era encontrar um abrigo. Quem não conseguisse um lugar sob o toldo azul, provavelmente passaria a noite, ou as horas seguintes, debaixo de chuva. Teve início uma briga para quem iria ocupar o toldo azul. Por incrível que pareça, não se presenciou uma luta de forças físicas, com empurra-empurra ou xingamentos. Amarildo e José travavam um embate discursivo sobre quem tinha o direito de ficar ali, protegido da chuva. Enganou-se quem disse ou supôs que para morar na rua não precisava embrenhar-se por questões complexas e filosóficas. O que se viu entre Amarildo e José foi uma verdadeira busca pela melhor estratégia de como usar a retórica em seu favor, tal qual uma seqüência de lances em que um enxadrista tenta derrotar sumariamente o seu adversário. Amarildo iniciou seu discurso dizendo que aquela roupa que usava era a única e que não podia molhá-la. José completou: aquela também era a sua única roupa. E mais, estava com gripe e febre e, portanto, não poderia ficar exposto à chuva porque, sem dúvida alguma, iria piorar se o fizesse. O primeiro disse, então, que tinha acabado de se curar de uma pneumonia. O segundo afirmou categoricamente – e ninguém sabe ao certo dizer se era verdade ou foi apenas uma estratagema para ganhar a discussão – que tinha casos de doenças respiratórias crônicas em sua família. E o um disse que convivia com ratos e baratas e que o risco de contrair uma leptospirose não era pequena. A batalha seguiu sem um vencedor por um longo tempo, até que, apelando para o emocional do adversário, adentraram no histórico de suas infâncias. Tiveram longa discussão sobre quem era o menos nutrido, o mais analfabeto, o menos forte, o menos saudável, o mais maltratado pelo pai, o que menos recebia carinho materno, o que ficava mais dias sem comer, sem beber ou tomar banho, o mais carente de afeto, o mais feio, o mais dentuço, o mais orelhudo, etc. Nem Amarildo nem tampouco José haviam acumulado mais de dois pontos de diferença na competição. O empate seguia certeiro por horas a fio de diálogo. A chuva cessou. O tempo abriu-se e as estrelas começaram a reaparecer. Mas, mesmo com um vislumbre de tempo melhor, mesmo com a possibilidade de que os dois pudessem sair de lá e seguir seus respectivos caminhos, sem tomar chuva, a discussão não teve fim. Agora não estava mais em voga o direito iminente de ocupar o lugar sob o toldo. A conversa tinha levado ambos para caminhos que eles nunca haviam imaginado; um caminho para o qual não se poderia deixar de considerar os mais sérios e importantes recursos filosóficos das questões mais complexas possíveis. Qual era o sentido da vida? Se perguntavam... Por que e para que viviam? Para quem? Como viviam? Valia à pena? Todos esses sofrimentos seriam recompensados ainda em vida ou seria preciso passar dessa para uma melhor? E qual a melhor forma? Qual a solução mais conveniente para dar cabo da própria vida? Então, decidiram. Após alguns segundos de paralização e reflexão, tempo no qual se permitiram reviver toda a sua trajetória até ali, decidiram. Amarildo estava cansado de perambular pelas ruas, não queria mais passar fome ou sede, queria um lugar em que tivesse companhia para a sua solidão, onde tivesse comida, bebida e roupas secas. Não importa o que tivesse que fazer para alcançar tudo isso. Devia ser preso. Na penitenciária, havia tudo aquilo de que seu corpo necessitava. José, por sua vez, estava cansado das mazelas da vida. Estava ausente de suas responsabilidades cristãs de zelar pelo próprio corpo, pela própria saúde, pela própria vida. Queria entregar-se, desistir de tudo. Sua alma precisava de descanso. Amarildo ajudaria José e José ajudaria Amarildo. E foi o que fizeram. Naquela manhã, logo cedo, após a chegada do sol, aconteceu o que já se previa, o que havia sido planejado pelos dois, e que seria relatado com certo sensacionalismo no jornal da noite: morador de rua é preso por atear fogo no corpo de outro morador de rua, causando-lhe a morte. O copo de José das tantas foi encontrado no centro de São Paulo, a maior capital brasileira, entre a Praça da República e o Largo do Arouche. Segundo legistas do Instituto Médico Legal, mais de oitenta por cento do corpo de José estava carbonizado. O mesmo será enterrado como indigente. Ao ser indagado sobre o que o levou a praticar o crime, Amarildo disse que há coisas que ultrapassam a compreensão daqueles que têm onde morar, ou o que comer, ou o que beber ou o que vestir. Foi internado no manicômio municipal.

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