EM TERRA DE CEGO, QUEM TEM UM OLHO É ENFORCADO Numa pequena aldeia ao norte do centro de um pequeno conglomerado municipal habita uma comunidade de velas de cera. Já de cara, devemos fazer uma breve interrupção na narrativa, posto que o leitor acaba de se deparar com uma aberração sob o ponto de vista do senso comum da realidade. Ora, é difícil de imaginar uma comunidade de velas de cera. Pois sim, leitor, é isso mesmo. Sigamos adiante. Essa pequena aldeia, ao norte do centro de um vilarejo qualquer, é povoada por seres, digamos, inusitados. São velas, sim, velas de cera. Devemos destacar um individuo muito peculiar, dentre todas as velas, em especial. Trata-se do reverendo mor da comunidade, que exerce a função de orador, aconselhador, tutor, administrador, condutor – bem como outros adjetivos atribuídos ao exercício de estabelecer certo poder moral, ético, religioso, espiritual e físico sobre os outros – das demais velas da comunidade, que, na grande, imensa e esmagadora maioria das ocasiões, o reverencia, qual um grande papa da comunidade católica ou um grão rabino da comunidade judaica ou um grandioso aiatolá da comunidade muçulmana e... acho que já está claro o ponto da questão que necessitamos aqui abordar. Sigamos adiante. E de forma ecumênica. E desprovidos de qualquer preconceito de cunho religioso. O Grão Velão, nosso personagem principal, é uma vela enorme, robusta e bem cerosa. Sim, prezados leitores, nosso Grão Velão é uma vela de quarenta e nove dias, a mais poderosa, a mais majestosa, a mais inexoravelmente grandiosa. Seu pavio possui nada menos que vários e vários centímetros de comprimento, uma coisa bonita de se ver, brilhante por conta da parafina, que sobe deslizante em busca do céu infinito, qual uma cobra naja pronta para dar o bote. Nos ritos cerimoniais, é possível ver o Grão Velão exibir sua alta chama, que aquece o espírito e ofusca o ego de todas as pequenas velas da comunidade, que simplesmente ficam hipnotizadas por tamanha beleza e harmonia que exala pelo ar da pequena capela da pequena aldeia ao norte do centro do pequeno conglomerado municipal de algum vilarejo qualquer. Grão Velão, no exercício do culto, é edificante. Domina a oratória de maneira precisa e cirúrgica. Com poucas lufadas de ar, sua chama cambaleia no ar em determinada forma geométrica, – vale concluir, de forma objetiva, para a boa compreensão do presente conto, que cada forma geométrica das chamas das velas representa uma determinada ação ou discurso, de forma que é possível observar quase que uma quantidade infinita de formas geométricas das chamas, que por suas vezes, representam outra quantidade quase infinita de palavras - o que é imediatamente repetido por todas as pequenas chamas de todas as outras pequenas velas da comunidade. Grão Velão é um líder nato. É seguido em todas as opiniões, das mais variadas estirpes. Tampouco, pode-se dizer, seria prudente mencionar que as velas da comunidade sentem-se intimidadas pela presença majestosa de Grão Velão, de modo que se lhes é podada a possibilidade de livre arbítrio e expressão. Tal hipótese seria imediatamente velada, com o perdão do trocadilho, pela mídia local. Pode-se sim, dizer, que Grão Velão domina também a imprensa. Mas isso não vem ao caso. Voltemos ao que interessa. Para além da relação de liderança religiosa estabelecida por Grão Velão, é certo dizer que a comunidade também atua no ramo comercial. Todas as pequenas velas, juntas, sob o comando rígido de Grão Velão, são uma empresa de prestação de energia térmica, talvez a maior da região. Nos dias de extremo inverno, os cofres da comunidade de Grão Velão se enchem de moedas de ouro e prata, diamantes, rubis e esmeraldas. Isto porque, os vizinhos da região são bastante ricos e o inverno é bem rigoroso. Os termômetros chegam a registrar a temperatura de dois ou dez ou quarenta graus abaixo do zero. Nesses dias, a produção da empresa Gran Velada chega aos limites máximos de sua capacidade. Só não contratam empregados extras porque não há velas que não sejam empregadas pela empresa de Grão Velão. A Gran Velada, pode-se dizer, é uma empresa estatal, se é que a comunidade de velas do pequeno vilarejo do pequeno conglomerado pode ser chamada de Estado. Então, em caso afirmativo para a hipótese anterior, deve-se também afirmar que Grão Velão é o chefe de Estado. O presidente, primeiro ministro, imperador, rei, xeique ou que nome se queira dar ao cargo de máxima autoridade da comunidade de velas. O fato é que Grão Velão manda e desmanda. Seja por meio dos discursos religiosos na capela, seja por meio do pulso firme com que comanda a empresa de distribuição de energia térmica Gran Velada, a maior da região. A autoridade de Grão Velão é tamanha que toda a comunidade teme mencionar seu nome. Optam por apelidos ou codinomes para denominá-lo, como por exemplo, o Mestre, o Maioral, e aí por diante. E, como é próprio da vida de qualquer Grão Mestre, pode-se dizer que a vida de Grão Velão também é recheada de inúmeros boatos e estórias contadas de boca a boca. E tais estórias continuarão seguindo de boca a boca, desde que o próprio Grão Velão não a descubra – a boca responsável pelo boato - e se lhe mande apagar a chama, numa alegoria simbólica da própria morte. Ouve-se por aí que, certa vez, uma certa vela de sétimo dia, com já uma certa idade nas costas e que é considerada uma figura de respeito e admirada pelas demais velas da comunidade pela capacidade de dizer coisas sensatas, estava a andar por aí dizendo ter ouvido uma certa estória de uma vela de aniversário que estava ali de passagem para visitar alguns parentes, e que segundo essa vela de aniversário que estava lá apenas de passagem, costumava, não raramente, ouvir dizer estórias e boatos sobre Grão Velão, nas localidades de uma região distante e longínqua da comunidade de velas, onde Grão Velão não pudesse ser capaz de intentar contra a segurança dessa tal vela de aniversário, responsável por espalhar o boato a seu respeito. Tratava-se de um conto surpreendentemente fantástico, de tamanha atrocidade, mas cuja autoria não teria sido possível provar. O fato de a história correr à boca pequena fora das cercanias da comunidade se devia em virtude da impossibilidade de Grão Velão tomar conhecimento de tal boataria, pois, caso isso se sucedesse, como acabou de ser dito, certamente cabeças iriam rolar. Por outro lado, o fato de tal boato não poder ter sido provado se deve, exclusivamente, ao fato de que Grão Velão também dominava o grupo de magistrados e juristas responsáveis por averiguar fatos, julgar condutas e aplicar punições e castigos. Mas também isso não vem ao caso. Devemos nos ater, neste momento, ao teor bizarro do boato que, em uma região ao largo das cercanias da comunidade comandada por Grão Velão, era dado como verdadeiro, o que contribuía de forma determinante para ilustrar a capacidade moral e ética de Grão Velão em lidar com seus súditos. Diz-se que, certa vez, contou-se uma estória, uma dessas estórias que quem ouve tem um estremecimento repentino de temor e repulsa, e que esta estória foi sendo transmitida à boca miúda, e que depois de muitos e muitos anos, esta tal estória chegou aos ouvidos de uma certa vela de aniversário que estava de passagem pela comunidade de velas para visitar sua tia-avó, a tal vela de sétimo dia da qual falamos anteriormente, respeitada pelos demais e admirada pela sua capacidade de dizer coisas sensatas. Conta-se que, certa vez, muitos e muitos anos atrás, Grão Velão, que hoje em dia é uma grande vela de quarenta e nove dias, era apenas uma vela comum. Mas sua sede pelo poder era algo inexplicável e incontrolável. Conta-se que Grão Velão, para crescer e tornar-se esta vela portentosa que se tornou, utilizou-se de subterfúgios mágicos, de feitiçaria e magia negra, que acarretou no desaparecimento de uma grande quantidade de velas, das quais hoje em dia não se tem mais notícia. Diz-se que, certa ocasião, Grão Velão reuniu todas as velas deformadas, com um pedaço faltando, e as trancou num grande galpão de madeira. Num só movimento de atrito entre as mãos que seguravam respectivamente um palito de fósforo e uma caixa de fósforo, provocou um enorme incêndio, cuja dimensão nunca se tinha tido notícia anteriormente, nem nos tempos mais remotos. É certo dizer que todas as velas deformadas, com um pedaço faltando, desmilinguiram-se no ardor do fogo do incêndio. Como já é possível imaginar, pois, Grão Velão, que até então era uma vela comum, enxertou em si toda a cera derretida das velas queimadas e inutilizadas, transformando-se na maior e mais grandiosa vela de que se teve notícias, uma portentosa e magnífica vela de quarenta e nove dias. Conta-se, ainda, que, no lugar do galpão destruído pelo incêndio, Grão Velão mandou construir uma enorme capela, ao menos para os padrões daquela pequena comunidade de velas, e intitulou-se, ele próprio, o primeiro e único chefe religioso daquela comunidade, responsável por manter a ordem da comunidade de velas. Não se sabe ao certo se a tal estória tem algum fundo de verdade, mas a julgar pela representatividade da figura de Grão Velão, sempre majestoso e autoritário, carinhoso e enérgico com seus súditos, é possível imaginar que tal boataria tem alguma procedência bem fidedigna aos princípios fundamentais da verdade. O fato é que, até onde se tem notícias, Grão Velão, desde o início dos tempos, ao menos para as novas gerações de velas, exerce a máxima autoridade religiosa e democrática. Todos o têm na mais alta estima e consideração. Não se atrevem, por outro lado, a tomar alguma iniciativa contrária às suas orientações, no sentido de incitar alguma discussão ou ponto divergente no correto e organizado asseio familiar da comunidade de velas. Afinal, este é o trabalho de Grão Velão, zelar pelo conforto e bem estar de todos os seus súditos, quer dizer, funcionários, quer dizer, contribuintes, quer dizer, cocidadãos. Bem, creio que fugimos um pouco da linha de raciocínio que aqui queríamos abordar. Será necessário retomar certo aspecto da figura de Grão Velão, e da comunidade em si, como um todo. Isto porque, Grão Velão não só é a autoridade máxima religiosa da comunidade, responsável pelo bom andamento da ordem moral e ética, na medida em que faz cumprir o seu zeloso trabalho de obrigar a todos a frequentar suas missas, que acontecem todos os domingos na capela. Grão Velão, por outro lado, também é a autoridade máxima no âmbito comercial da comunidade, responsável por trazer aos seus moradores o conforto pecuniário e o bem estar financeiro. É certo que não se pode dizer que todos ganham igualmente, já que estamos a falar de uma estrutura capitalista, onde quem pode mais recebe mais. E, é claro, não se pode deixar de perceber que, neste caso específico, Grão Velão é o maior de todos os beneficiários dos lucros advindos da empresa Gran Velada. Como já se disse anteriormente, a Gran Velada é uma empresa de distribuição de energia térmica, produzida a partir da pequena chama de cada vela, que se acende ao anoitecer. Nesse sentido, é até justo que Grão Velão obtenha a maior fatia lucrativa das benésses advindas da empresa Gran Velada, uma vez que é ele próprio, uma vela enorme de quarenta e nove dias e com uma chama imensa e reluzentemente brilhante, o maior produtor da energia térmica, responsável por mais de três por cento da produção mensal da empresa. No entanto, é preciso salientar que o foco da presente narrativa não está devidamente alinhado com este tipo de questão. O que queremos aqui abordar é um outro aspecto da condição moral e ética de Grão Velão, que é o de zelar pelo bem estar e conforto de seus cocidadãos, como aqui já outrora se averiguou. E para isto, passemos a introduzir um fato que se deu num certo dia, que modificou para todo o sempre a estrutura emocional da comunidade, bem como de todas as outras comunidades que, por ventura, poderiam vir a travar algum tipo de contato com a comunidade de velas comandada por Grão Velão. Tudo começou numa manhã ensolarada de domingo, quando todas as velas, sem exceção, estavam reunidas na capela para a grande cerimônia liderada por Grão Velão. Em seu sermão, o mesmo encontrava-se, imponente, diante de todos os seus súditos. Numa voz de trovão, fazia saber a todos que a obediência é uma virtude moral que deve ser cultivada a qualquer custo. Assim bradava Grão Velão, aos olhos e ouvidos de todos: “Hoje, meus caros e queridos companheiros, estamos aqui reunidos por uma razão muito especial. A celebração de mais um ano em que comemoramos nossa independência religiosa, social e financeira. Não dependemos de ninguém. Nenhuma outra comunidade ou grupo de pessoas está à nossa frente. A energia térmica, produzida por nós, e por apenas nós, é o futuro da nação. Todos dependem da energia que produzimos, etc, etc, etc”. E alguém que estava bem embaixo do púlpito ocupado por Grão Velão, talvez um primeiro subordinado e assistente para assuntos gerais, seu chamado ‘testa de ferro’, gritou bem alto para que todos pudessem repetir: “Viva Grão Velão, Viva Grão Velão”. E todos, sem exceção, repetiram em alto e bom som: “Viva Grão Velão, Viva Grão Velão”. E o discurso de Grão Velão seguiu por mais três quartos de hora, tomando devidamente a atenção e a admiração de todas as demais velas presentes no recinto. A capela estava lotada, não cabia mais ninguém, nem mesmo uma velinha aromática, decorativa e bem pequenina que, se quisesse estar presente, não poderia, por falta de espaço. Mas também esse não era o caso, pois todas as velas da comunidade, das menores às maiores, estavam presentes. A cada frase dita, a cada pensamento concluído, a cada respiração mais longa dada por Grão Velão, ouvia-se o murmurar de aprovação por parte da comunidade de velas. “Viva Grão Velão”. É certo que todos concordavam absolutamente com o teor verídico das palavras de Grão Velão, independentemente do tipo de coerção que os levou a ter todos o mesmo tipo de comportamento e opinião. E Grão Velão seguia com seu discurso de engrandecer e eternizar a importância da energia térmica, bem como sua relevância para o futuro da humanidade, sempre com o aval das demais velas espremidas na capela, que eram vigiadas pelos guardas de Grão Velão, que vigiavam de forma velada, – desculpem-me, novamente, pelo trocadilho - escondidos dos olhos de todos. “Viva Grão Velão, Viva Grão Velão”. Após a cerimônia, quando a noite já ia caindo e a primeira estrela tomava o seu devido lugar no céu, Grão Velão fez saber a todos que daria uma grande festa para comemorar os bons resultados daquela safra anual. As metas da empresa Gran Velada superaram todas as expectativas. A energia térmica produzida no comando de Grão Velão atingiu a impressionante marca de não sei quantos milhões de megawatts, suficientes para iluminar e aquecer centenas de lares ao longo dos vales que cercavam a pequena aldeia ao norte do centro do conglomerado municipal, num raio de várias e várias centenas de metros de onde morava a comunidade de velas liderada por Grão Velão. A festa seria ao ar livre, sob a luz do luar, em frente à capela, onde seria construída uma enorme fogueira, que deveria ficar acesa até bem tarde da noite, madrugada adentro. A fogueira seria equivalente à potência da chama de mais de mil velas reunidas, ou então de apenas algumas dúzias de velas do porte do nosso personagem Grão Velão. Uma fogueira cujo fogo arderia por várias horas consecutivas e cuja luz seria vista até mesmo nos mais distantes sítios daquele povoado. E não se fez diferente. O calor imenso e o brilho irradiante e ofuscante eram temerários. Poderia queimar o pavio de alguma vela de imediato, ou derreter-lhe a cêra de súbito. Uma fogueira de respeito, portentosa e bela, calorosa e muito bem iluminada, cuja explosão dos gases fazia estalar a madeira de forma rítmica e harmônica, conduzindo todas as velas para uma embalada dança circular ao seu redor. E a celebração da festa, como já se disse, durou até altas horas. O céu já estava muito estrelado e não se via nenhum vislumbre de alguma luminosidade solar. Apenas o branco das estrelas e o amarelo esplendoroso da fogueira. Foi só quando, após a coruja piar, quase na hora do galo cantar, que a imensa fogueira foi se apagando, devolvendo ao cenário a escuridão da noite que lhe é peculiar. Todas as velas já estavam voltando cada qual para sua residência. Grão Velão ia se despedindo e recolhendo-se à capela, sua verdadeira morada. No entanto, num átimo de segundo, efetivou-se aquilo que jamais poderia se imaginar, e que foi o grande ponto de mudança de toda aquela comunidade, até então pacata e inofensiva, ao menos para o conhecimento da grande mídia. Quando toda a aldeia ao norte do centro do conglomerado municipal já estava se preparando para dormir, antes mesmo do primeiro raio de sol despertar por detrás da nuvem escondida pela escuridão da noite, um grupo de velas que se preparava para deixar a fogueira já extinta visualizou um ponto luminoso bem ao longe. Cerraram os olhos de modo a enxergar melhor aquilo que ainda não conseguiam identificar. Ainda sem entender do que se tratava, apontaram para o lugar de onde vinha aquela luminosidade e compartilharam sua dúvida com as demais velas que ainda não haviam deixado o local. “O que é aquilo?”, uma delas perguntou. A outra respondeu: “Não tenho a mínima ideia”. Uma terceira ponderou que poderia ser o brilho de uma estrela que já não existia há milhares de anos luz. Porém, o que é certo dizer é que todo aquele bafafá que começou de forma repentina ao redor da fogueira extinta despertou o interesse de Grão Velão, que se voltou para trás e se deparou com o ponto de luz não identificado. Até o nosso líder nato, o heroico e bem aventurado Grão Velão, perdeu todas as referências do que poderia significar aquele ponto distante, brilhante e luminoso, meio branco meio azulado, bem no final do horizonte, quase onde o céu faz a curva. Numa voz tonitruante, Grão Velão reuniu um grupo de velas, das mais resistentes, e ordenou que fossem buscar aquilo, seja lá o que fosse, seja lá onde estivesse. E o grupo de velas foi em busca daquele ser brilhante não identificado, que estava sendo o objeto de espasmo e espanto por parte da comunidade local. Enquanto o grupo incumbido de trazer ‘aquilo’ não voltava de sua longa jornada, todos os demais membros da comunidade de velas ficava reunido na capela, discutindo as inúmeras possibilidades que poderiam advir daquilo tudo. Imaginem só, se fosse uma vela cuja chama pudesse ser vista a centenas e centenas de metros de distância? Se fosse uma vela muito maior e muito mais poderosa de que o líder que todos seguiam mediante a maior devoção? Grão Velão, claro, estava bastante preocupado com o destino de sua comunidade, de seus súditos e, é óbvio, com o seu próprio futuro. E se fosse ameaçado por uma força térmica e luminosa maior que a sua, diante da qual se visse impossibilitado de juntar forças e lutar contra? Sete noites e sete dias se passaram até que o grupo selecionado para a empreitada voltou ao lar. Logo que estavam chegando pela estrada, todas as velas se juntaram ao redor do séquito, que carregava uma caixa fechada com pregos a marteladas. No seu interior, diziam, carregaram, por incansáveis quatro amanheceres, o prisioneiro, que fora resgatado no meio do caminho. Antes de a caixa ser aberta e o prisioneiro revelado, todas as velas abriram caminho e deixaram que o grupo passasse, para proceder à primeira triagem com o líder Grão Velão, que autorizou a passagem do grupo que carregava o prisioneiro à capela. Chegou o momento da revelação. Todos estavam apavorados, não sabiam o que esperar. Com exceção de Grão Velão, que exibia uma tranquilidade taciturna, as demais velas vacilavam com suas chamas, que quase se apagavam com o sopro de mistério que pairava no ar. Contudo, ainda que Grão Velão aparentasse estar seguro com relação às possibilidades sobre o futuro de sua comunidade, é certo que, por dentro, estava se derretendo todo. Mal conseguia ficar em pé, de tão nervoso que estava. Sua chama, ainda que continuasse brilhante e esbelta, estava vacilante e soprando um ar rarefeito na direção contrária, sinal de que não estava, absolutamente, no controle da situação. Ainda com sua voz tonitruante, mas um pouco rouca, ordenou aos súditos que abrissem a caixa para fazer revelar o prisioneiro. E, como seu desejo era uma ordem, o prisioneiro foi colocado para fora da caixa, exibindo um brilho intenso de cor branco azulada, coisa que nunca se vira até então, principalmente por aqueles lados, onde reinava, dominante, a cor amarelada das chamas das velas da comunidade sob seu comando. Apesar de amedrontado, o prisioneiro foi ordenado para sair da caixa. Devagar, cuidadosamente, para que ninguém tomasse um susto e algum movimento estapafúrdio tomasse conta. Passo a passo, o prisioneiro foi indo em direção ao lugar apontado por Grão Velão. Foi deitado e amarrado ao chão para que as demais velas o pudessem analisar com mais rigor e cautela. Ninguém entendia muito bem de onde vinha aquele brilho intenso azulado do prisioneiro. A partir de então, teria início o interrogatório. Grão Velão, adotando uma postura ameaçadora, voltou-se para o prisioneiro e perguntou: “De onde você é, prisioneiro?” Ao que este respondeu: “Venho de muito longe, de um lugar bem distante do chão”. Grão Velão, assim como as demais velas, ficaram confusas com a resposta do prisioneiro. “Explique-se melhor!” E o prisioneiro continuou, sob as caretas ameaçadoras das velas: “Eu venho do Farol da Barra”. “Farol da Barra?”, perguntaram as velas em côro. “Sim, Farol da Barra, um farol construído na encosta do mar para impedir as embarcações de atolarem”. A resposta completa do prisioneiro deixou as velas ainda mais confusas. Grão Velão começou a ficar bastante irritado, coisa que acontecia quando perdia o controle da situação. Não sabia ao certo com o que estava lidando e, portanto, resolveu engrossar no interrogatório. “Então quer dizer que você mora no Farol da Barra. Ouviram essa? Ele mora no Farol da Barra!” E soltou uma sonora gargalhada, gozando da cara do prisioneiro. E todos os súditos de Grão Velão o seguiram na gargalhada, não tanto pelo teor humorístico do comentário, mas porque assim deviam proceder, já que o chefe, o mestre os havia, implicitamente, ordenado. “E me diga apenas uma coisa”, continuou Grão Velão com seu discurso, “o que exatamente você faz por lá?” E o prisioneiro, pacientemente, mas apavorado, explicou: “Sou uma lâmpada, uma lâmpada de neón, responsável por iluminar o caminho das embarcações que chegam e saem do porto”. E Grão Velão, de maneira imponente e zombeteira, disse: “Hummm, então você é muito importante, é uma lâmpada, uma lâmpada de neón, muito bem, parabéns”. E soltou outra sonora gargalhada, que logo foi imitada por todas as velas que se encontravam no recinto, dentro da capela. Mas tão logo passou a graça da piada, a verdadeira ficha caiu para Grão Velão. Num átimo de segundo, veio à tona toda a carga de informação de que necessitava para se assegurar do perigo que o futuro de sua comunidade sofria. “Saiam todos daqui, imediatamente. Todos”. E num gesto bem ríspido, explusou todas as velas para o lado de fora da capela. “E o que fazemos com o prisioneiro, chefe?” Perguntou uma das velas, que estava segurando a lâmpada de neón amarrada no chão. Este súdito levou um safanão de Grão Velão, que gritou: “Ele fica. E você sai daqui. O mais depressa possível”. E a capela ficou vazia, apenas com Grão Velão, que exibia sua chama robusta, mas que, trêmula, era ofuscada pelo brilho intenso, equilibrado e perene do prisioneiro, a lâmpada de neón. Grão Velão não entendia direito qual o combustível da luminosidade do prisioneiro. Só imaginava, e com certa dose de pessimismo, que aquela figura representava o futuro da iluminação. Em outras palavras, segundo a conclusão tacanha de Grão Velão, o futuro da empresa de energia térmica Gran Velada estava ameaçado. E se ninguém mais dependesse da luminosidade provocada pelas chamas das velas da comunidade da aldeia ao norte do centro do conglomerado municipal? E se o calor, que até hoje a Gran Velada era a pioneira do mercado em fornecer, tivesse outras fontes? A concorrência era algo que Grão Velão temia deveras. E se aquela lâmpada, aquela lâmpada de neón, substituísse, em todas as funções, o papel das velas perante a comunidade internacional? E quantas dessas lâmpadas de neón poderiam existir por aí? Era necessário, pensou ele, cortar o mal pela raiz. Com o prisioneiro ainda amarrado ao chão, Grão Velão chamou seu séquito de velas de volta para dentro da capela. Ordenou que todos fizessem silêncio absoluto, tendo em vista o grau de importância do presente momento, no qual seria revelado o veredito sobre o futuro sombrio da pobre coitada lâmpada de neón. E Grão Velão, tomando seu lugar de líder, esperava que todas as velas da comunidade ocupassem seu lugar na capela, que logo ficou entupida, já que as velas estavam curiosas por demais para saber das novidades. E Grão Velão iniciou seu discurso: “Meus caros amigos, velas queridas, com quem tive e ainda tenho o prazer de dividir a árdua, porém gratificante e necessária tarefa de fornecer luz e calor aos mais necessitados, dirijo a vocês algumas palavras de enorme complexidade, que contribuirão para a permanência de todos nós aqui por mais algum tempo, que permitirá que nossa comunidade de velas se mantenha realizando sua tarefa destinada pelo Sopro Espírito Santo das Velas”. Todas as velas, já caladas, permaneciam muito atentas às palavras de Grão Velão, que tinham o peso e o timbre de um líder nato. “Hoje, diante dos acontecimentos que nos arrebataram de surpresa, cheguei à conclusão, depois de muito pensar e refletir, que nossa comunidade está em perigo. Não só nós, míseras velas de cera, podemos chegar ao fim dos nossos tempos, como a função por nós exercida, a de distribuir calor e luz aos que precisam, de repente, pode ser realizada por outro qualquer. Hoje, queridos amigos, descobri que podemos ser facilmente substituídos. E não é isso que queremos”. Todas as velas, num côro de vozes uníssono, concordou com seu líder, emitindo um sonoro “NÃO”. “Esta lâmpada, meus caros, representa o futuro sombrio, o horizonte que não podemos prever”. Grão Velão vociferava e apontava para a pobre coitada e amedrontada lâmpada de neón, que, apesar de estar tremendo de medo, mantinha o brilho de sua luminosidade na potência máxima, ofuscando as vistas de todos que para ela olhavam. E continuou com seu discurso de ódio: “Enquanto essas criaturas existirem, não estaremos seguros. A qualquer momento, podemos ser extintos por uma horda de lâmpadas de neón vindas de todos os lugares, para acabar com a nossa raça. E não é isso o que queremos”. E toda a comunidade de velas, numa só voz uníssona, gritou: “NÃO”. E Grão Velão seguiu com suas palavras ao público: “Não temos tempo a perder. É necessário tomar uma ação enérgica, a fim de proteger o senso de conforto e tranquilidade dos nossos. É preciso que eliminemos quaisquer resquícios dessas forças obscuras que não sabemos de onde vem. É preciso dar fim a isso tudo, aqui e agora”. E Grão Velão foi aplaudido e ovacionado, fazendo a capela estremecer com tamanho alvoroço. A comunidade de velas de cera havia compreendido o recado. Todos começaram a gritar em conjunto: “Enforca, enforca, enforca, enforca”. E Grão Velão, assim que a multidão se acalmou minimamente, voltou a falar: “ A voz do povo é a voz de Deus. Se é a vontade e o desejo de todos que essa lâmpada seja enforcada, então que assim seja”. E numa salva de palmas ensurdecedora, a lâmpada, a pobre coitada lâmpada de neón foi levada para o lado de fora da capela, onde se lhe amarraram uma corda no soquete, lugar que mais se assemelhava a um pescoço. Quando menos se percebeu, a lâmpada, a pobre lâmpada de neón, já estava enforcada, estraçalhada e com seus cacos jogados pelo chão. Há ainda quem tenha observado o gás azulado da extinta lâmpada se espalhar pelos ares e sendo levado pelos ventos, qual um espírito que abandona o corpo após sua morte. E Grão Velão, assim como seus súditos, acreditam ter feito o melhor para a sobrevivência de sua comunidade. O futuro é perigoso, incalculável e imprevisível. E que assim continue, pensou Grão Velão, para toda a infinidade dos tempos.
A LEI É PARA TODOS, OU ENSAIO SOBRE O RELATIVISMO LEGISLATÓRIO Inicio este ensaio, caros leitores, trazendo certa luz a um detalhe de extrema importância, cujo estudo nos fará perceber a profundidade e a complexidade do tema, que, apesar de tão óbvio e previsível sob o ponto de vista legislatório, se concretiza sob vias enviezadas e controversas, muitas vezes colocando em xeque a própria estrutura cívica e democrática de um país, como por exemplo algum desses países da América do Sul onde se fala o português, somente a título de exemplo, que fique bem claro. Falo especificamente do título deste ensaio, no qual se observa a ausência do sinal de pontuação. Poder-se-ia discutir a relevância de se observar a importância da necessidade de se ter um título finalizado com certa pontuação. É preciso dizer, catergoricamente, que no presente caso a relevância da observância da ausência da pontuação é condição fundamental para se estabelecer os parâmetros do paradoxo contido em tal questão. Ora, uma vez que pontuação final não há, é certo concluir que ao título da referida crônica poder-se-ia atribuir qualquer sinalização, seja de ordem afirmativa ou negativa, ou ainda de ordem interrogativa. E devo dizer que é exatamente este o ponto a ser abordado, no tocante às inúmeras e diversas possibilidades de se lhe atribuir sentido. Em outras palavras, quando analisamos o título, verifica-se a ambiguidade de sentidos. Por um lado, pode-se afirmar que a lei, sim, é para todos. No entanto, ainda assim, é preciso analisar a concretização de tal afirmativa. Então, se a lei é para todos, vislumbra-se duas possibilidades muito evidentes, sob o ponto de vista de sua realização: a de que seja realizável na prática e a de que não seja realizável na prática. Para fins de simplificar a celeuma discursiva, adotemos, por agora, a sugestão de levar a letra da lei, da palavra, ao nível de realidade. Ou seja, se está escrito então é porque é. Isto posto, deixemos de lado as preliminares irrelevantes e adentremos ao ponto chave da questão. De volta à análise do título, sob o ponto de vista da linguagem sintática, temos o seguinte conceito: a lei é para todos. O que é fácil de se comprovar, haja vista o artigo quinto da constituição federal brasileira, que dispõe sobre a equiparação legislativa independente da classe social do indivíduo. Todos são iguais perante a lei, é o que está escrito, e quem discordar estará discordando de nada menos que a suprema lei que rege o nosso país democrático. Basta, para corroborar tal afirmação, colocar um ponto final no título, ou até mesmo um ponto de exclamação. Não restará quaquer dúvida ou necessidade de esclarecimento se o conceito for colocado da forma adequada, qual idealizada pelo mais renomado legisador: A lei é para todos. Todos são iguais perante a lei! Não resta qualquer possibilidade de não entender o papo reto. A lei é para todos, já dizia a constituição federal da nossa pátria amada. Todavia, por outro lado, poder-se-ia observar que, já que não se encontra qualquer pontuação final no título, que o sentido do conceito poderia ser atriuído pelo próprio leitor. E se se colocasse um ponto de interrogação, de modo a causar a discórdia e a polêmica sobre um assunto tão assertivo? E se lêssemos, já no título deste ensaio, uma pergunta, uma dúvida sobre igualdade perante a lei? O que se diria? A lei é para todos? Todos são iguais perante a lei? E se, ainda, mais uma vez a proveitar a ausência de qualquer pontuação contida no título, fosse atribuído qualquer sentido, seja figurativo, seja implícito, ao conceito do título da presente crônica? E se fosse escrito, logo após o título ausente de pontuação, a seguinte palavra, entre parênteses, como a sugerir uma ação psicológica, (gargalhadas), ou (risadinhas de desdém)? Fico a imaginar o impacto que seria ler, em algum lugar, ou até numa crônica, porque não, o seguinte título: A lei é para todos (gargalhadas). Ou então: Todos são iguais perante a lei (risadinhas de desdém). Ou ainda, num desses instrumentos tecnológicos, observar que em algum lugar está escrito: O artigo quinto da constituição federal do Brasil dispõe sobre a igualdade de todo cidadão brasileiro perante a lei, independente de cor, sexo ou condição social. E, ao final da frase, um anágrama de códigos cibernéticos, tal como 'kkkkkkkk' ou 'rsrsrsrsrsrsrsrs' ou 'SQN'. Tudo isto para dizer que talvez seja, senão impossível, muito difícil facilitar a celeuma discursiva. Verifica-se uma enorme dificuldade em levar ao pé da letra o título deste ensaio apenas por meio de seu significado de afirmação. Como acreditar que a lei é para todos ou que todos são iguais perante a lei, quando vemos, quase que diariamente, na televisão, no jornal, na revista, ou observando situações na rua, cenas pitorescas que traduzem a exata oposição da letra da lei suprema da nossa constituição federal? Passemos a relatar duas situações similares que traduzem integralmente o ponto que aqui se aborda. A exemplo de que, perante a lei, todos devem ter o mesmo tratamento, é possível estabalecer uma contradição inequívoca, sob a égide do conceito de tratamentos iguais conforme suas respectivas desigualdades. Vejamos, pois. O primeiro caso é o impressionante relato do juíz de direito que foi pego numa parada de blitz da lei seca, alcoolizado, sem os documentos do carro, que não estava sequer emplacado. Em circunstâncias normais, é certo imaginar o que aconteceria com o sujeito pobre coitado que foi vítima da ação, com a intensa contribuição da Companhia de Engenharia de Tráfego. Mas, como nosso infrator era um juíz de direito, então o mesmo foi desenquadrado, por si mesmo, da categoria de mero cidadão normal. Aqui temos uma ferramenta poderosa da síndrome do pequeno poder. Nosso juíz de direito deu voz de prisão à agente da Companhia de Engenharia de Tráfego, que apenas estava cumprindo sua obrigação, numa demonstração cabal de que todos os cidadãos, caros leitores, não são iguais perante a lei. A segunda situação, bastante parecida com a primeira, se deu no dia de hoje, quando eu fazia as vezes de mero observador da vida cotidiana. Mas, para que o alcance da compreensão por parte do leitor seja total, deve-se fazer um pequeno aparte, no sentido de clarificar o exato termo da sigla TRF. Ora, caro leitor, trata-se do Tribunal Regional Federal, um órgão mais do que importante do nosso importante Poder Judiciário, uma dos pilares tripartidos da nossa bem estabelecida democracia brasileira. E não estamos a falar de qualquer tribunal, não. Trata-se de um Tribunal Federal, sediado num edifício majestoso bem no coração da Avenida Paulista, talvez o centro financeiro da capital paulista. Voltemos à situação bizarra que deu origem à iniciativa de se escrever o presente ensaio. Estava eu numa dessas pequenas ruas de bairro, num cruzamento recheado de pedestres atravessando a rua com o semáforo de cor verde lhes piscando, quando de repente, não mais que de repente, surge um grande carro, preto, luxuoso, com três grandes letras inscritas em sua placa: TRF. Tribunal Regional Federal, pois. E eis que, contrariando toda a lógica desenvolvida para estabelecer a igualdade de direitos entre cidadãos, o majestoso carro luxuoso, que provavelmente carregava um juiz ou desembargador federal, ou sua esposa ou filha necessitadas de fazer compras, ultrapassa o semáforo vermelho, impedindo os demais pedestres de exercer seus direitos de ir e vir, sob o risco iminente de se tornar vítima de um atropelamento. Nada mais a dizer, caros leitores. Somente a amarga conclusão de que, na nossa sociedade democrática de direito, nem todos são iguais perante a lei.
ESFUMAÇAMENTO DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA DO CIDADÃO MÉDIO BRASILEIRO Hoje, quarta-feira, dia 29 de outubro de 2014, quase três dias completos passados do resultado anunciado das apurações da votação para eleições presidenciais, resolvi manifestar-me, não exatamente a respeito das eleições propriamente ditas, nem das respectivas campanhas, ou tampouco das respectivas imprecações blasfematórias que se ouviu por aí nas últimas semanas, mas para compartilhar um fato muito interessante, que talvez possa refletir um pouco do que ainda não consigo denominar muito precisamente, mas que pode ser classificado, sob um ponto de vista muito particular, como uma espécie de esfumaçamento da consciência política do cidadão médio brasileiro. Mas, antes, é preciso fazer um retrospecto noticial acerca das questões que envolveram todo o processo de campanha dos candidatos Dilma e Aécio à presidência da república, o mais alto cargo elegível de nossa democracia. Desde o início das campanhas, e com muito mais intensidade nas semanas que antecederam o segundo turno das eleições, constatou-se a formação de uma polarização muito acentuada, com relação às questões macroexistenciais das propostas de governo de cada um dos candidatos. Quem votava em Aécio xingava o eleitor de Dilma de comunista e burro. Quem votava em Dilma xingava o eleitor de Aécio de coxinha e reacionário. Era só passar o dedo de cima para baixo na linha do tempo do facebook insalado em algum dispositivo tecnológico como telefone celular ou tablet, que podia-se verificar o assunto dominante, ou talvez o único assunto de que se falava. Do dinheiro da Petrobrás ao desvio de verba da saúde no governo de minas, da corrupção de um à falta de honestidade do outro, do mensalão petista ao mensalão tucano, o fato é que pouco se viu de debate de propostas efetivas, mas sim, agressivos brados de ódio e intolerânia de ambas as partes. Tanto assim foi que decidi não me prenunciar acerca desses assuntos. Não queria ser taxado de coxinha reassa nem de porco capitalista. Ou vice e versa. Dito isto, temo dizer, acho que dei um tiro no pé. Assumo aqui, réu confesso, que meu voto não foi por Dilma nem por Aécio. Votei, sim, no Eduardo Jorge, e no carismático candidato ao senado, que levou nem um por cento dos votos, Kaká Werá. Minha vibração atual está em me dedicar a questões pertinentes à integridade do meio em que vivemos. Me preocupo com o amanhã, se haverá água pra se beber, ou ar com a qualidade boa pra se respirar, ou uma verdura livre de toxinas pra se comer. Mas isso não vem ao caso. Voltemos ao tema. Tendo dito que a minha preferência por Aécio ou Dilma foi inexistente, nula, cabe somente confirmar minha confissão, ainda que extemporânea. Não votei nem por um nem por outro. E podem me chamar do que quiser, coxinha comunista, reassa burro, esquerda caviar ou direita sei lá de quê. Não me importa. Quero somente contar um causo divertido pois, assim, creio que terei mais utilidade pública do que apenas expressar minha opinião, em favor de um ou outro lado, de maneira reativa e arbitrariamente agressiva. E, aí, então, chegaremos ao ponto da questão, do esfumaçamento da consciência política do cidadão médio brasileiro. Vamos o causo. Dona Lúcia é a moça que trabalha lá em casa, faxinando ou cozinhando ou lavando a roupa. Dona Lúcia é uma senhora de cinquenta e poucos anos, hipertensa, diabética, e que está na fila para transplante de córnea. Mas não vem ao caso tratar dessas questões patológicas. Assim como não vem ao caso o fato de Dona Lúcia ser fascinada por um doce. O que vem o caso mencionar, a título de emenda para a questão central, a do esfumaçamento da consciência política do cidadão médio, é que Dona Lúcia faz de tudo pra comer um doce, apesar de sua condição diabética e necessitada de um transplante de córnea, decorrente da diabete avançada. Nesse quesito, é difícil imaginar que Dona Lúcia tenha, senão amor prório, alguma consciência de quais condutas deve adotar para reverter tal quadro, se é que se pode falar da reversibilidade do mesmo. Hoje a Dona Lúcia foi trabalhar lá em casa. Quando entrei na cozinha, logo de manhã, para tomar um café, logo após o 'bom dia, como vai, tudo bem', ela me perguntou se eu tinha votado na Dilma. Eu disse que não tinha votado na Dilma. Aí ela fez uma cara de quem comeu e não gostou. Provavemente deve ter passado pela cabeça dela algo do tipo que outrora fora tão difundido na grande mídia a respeito dos eleitores que não votaram na Dilma, como coxinha a reacionário, e que talvez, por ter assistido de perto alguma manifestação desse tipo, tenha pensado em reproduzir. Aí eu falei que também não tinha votado no Aécio. Aí o tempo fechou. A cara da Dona Lúcia era a de quem não estava entendendo patavinas do que eu estava falando. Vendo que ela não disse nada, resolvi complementar a informação. Repeti que não havia votado no Aécio tampouco, que tinha resolvido exercer o meu direito democrático anulando o meu precioso voto. Aí ela disse, quase revoltada, com uma voz taciturna e constipada, talvez por causa da gripe, mas que vibrava nas cordas vocais como um certo tom de desapontamento e desilusão: 'Puxa, Dani, você anulou seu voto? Que pena!...' Então eu disse, da maneira mais delicada que consegui encontrar, que o voto era meu e que eu fazia dele o que bem entendesse. Bastaram alguns segundos para a que Dona Lúcia pudesse entender o sarcasmo da colocação, tendo respondido logo a seguir: 'Que menino desaforado. Aff...' Então eu repliquei: 'Dona Lúcia, porque você está tão revoltada por eu ter anulado o voto?' E ela treplicou: 'Porque aí o voto vai ajudar a Dilma.' Aquilo me deixou intrigado. Não tanto pelo fato de duvidar da veracidade da informação. Quem poderia ter dito isso a ela? Sendo verdadeira ou mentirosa, tal afirmação não me abalou por tal sentido. O que me deixou confuso, confesso, foi o fato da Dona Lúcia ter ficado indignada com o fato do meu voto nulo ter favorecido a Dilma, sendo que ela própria havia votado na Dilma. 'Não entendi', falei. Creio que ela também não entendeu. E aí chegamos, finalmente, ao cerne da questão. O tal do esfumaçamento da consciência política do cidadão médio brasileiro. Ele sabe que votou ou deixou de votar em fulano ou beltrano, mas desconhece o alcance que seu voto provoca. Quais as consequências de ter votado em Dilma ou Aécio? E mais...Quais as consequências de ter votado em ciclano ou em sei lá quem para o senado ou para a câmara dos deputados? O cidadão médio tem consciência de que seu voto pode ter favorecido, por exemplo, fulano ou beltrano que, por sua vez, pode ter sido responsável pelo veto de um projeto no Congresso Nacional, projeto o qual beneficiaria a própria representatividade do povo diante das decisões tomadas? Ou seja, o cidadão médio brasileiro tem a consciência de que votou num ciclano que está pouco se fodendo para a representatividade daquele que lhe concedeu seu voto? Ou está pensando apenas no bembom que será exercer o poder com a máquina pública ao seu dispor, à revelia do voto de confiança do cidadão médio brasileiro? E podemos supor que esse tal cidadão médio, que pode ser a Dona Lúcia, mas que pode também ser o dono do boteco da esquina ou o encarregado da entrega do botijão de gás ou o gerente da loja de roupas no shopping tatuapé ou iguatemi ou jk ou até um mero escritor de crônicas, como por exemplo este que vos escreve, tenha plena e total consciência das consequências de suas ações e condutas como cidadão médio brasileiro? Seria possível supor que um sujeito que pratica atos que lhe são pessoalmente prejudiciais, como por exemplo comer um torresmo bem gordo na saída da consulta do cardioogista, vá ter absoluta consciência da dimensão do seu voto? Se não sabemos definir o que é melhor para nós mesmos, ou ao menos não praticamos ações para atingir tais objetivos, o que dirá do nosso discernimento do que é melhor para o outro, tendo isso como base para decidirmos o nosso voto? Eis o esfumaçamento da consciência política. Suponho que, no geral, o cidadão médio tem uma visão distorcida das suas atribuições em sua dimensão política. Ou então o sistema lhe tolhe sobremaneira as condições vitais para fazer alguma mudança significativa. Mas sejamos bravos, persistentes. Continuemos votando certo, de acordo com a nossa consciência, bem como tomando condutas dignas de um cidadão com a consciência política para fazer acontecer a mudança, a reforma, alguma coisa diferente do que aqui e agora está colocado, posto que assim como está, realmente, não dá mais pra ficar. Tanto no âmbito da política externa quanto dentro de nós mesmos. Já se ouviu dizer por aí, numa dessas famosas expressões do dito popular de autor desconhecido, que quem muda a si mesmo muda o mundo.

O RETORNO DA MORTE.

O RETORNO DA MORTE Dizem por aí que a morte faz algumas encomendas. A história que aqui será contada aconteceu com Fulano. É de se supor, portanto, que a morte veio busca-lo. Realmente, Fulano viveu seus últimos dias consciente, ou inconsciente, como poderá se observar, do término certo de sua vida aqui na Terra, com esse corpo físico do qual usou e abusou. Para alguns, dizem, a morte chega repentinamente, sem aviso prévio. Apesar do susto de vê-la presentificada já seria motivo suficiente para ter um piripaque fulminante e facilitar totalmente o seu trabalho, ao se deixar levar carregado, qual um saco de batatas inerte, às profundezas do lugar de onde não se tem notícias de que alguém tenha voltado. As noticias que correm sobre as visitas que a morte faz também sofrem de uma certa falta de coerência de compreensão espacial e temporal. Isso porque, o simples fato de alguém tentar explicar a outrem a visão da morte incorre num certo desprestígio de ordem lógica, uma vez que não se trata de um acontecimento de fácil credibilidade. Experimente dizer ao seu colega no trabalho ou a um desconhecido na rua que você viu uma figura, de capa preta com capuz, uma foice prateada na mão e um bafo do cão, o próprio estereótipo da morte, e esta figura lhe dirige a palavra e, de repente, você se vê trocando uma ideia com a dita cuja, e esta lhe fala, vem comigo, vamos dar uma volta. Ninguém acreditaria, claro. E por saber que ninguém irá acreditar é que não se toca no assunto. A morte foi, é e sempre será envolvida num tabu difícil de ser desenrolado, ainda mais quando se associa a morte a essa imagem decrépita da figura de capa e capuz pretos com a foice prateada. Nada mais pavoroso. Mas com Fulano aconteceu, de verdade. Não que alguém tivesse visto ou testemunhado, mas realmente acredita-se, de tanto se ouvir dizer por aí, tantas pessoas dizerem, ainda que com algum grau de discrepância de um para outro, que a morte pegou Fulano de jeito e derradeiramente. Era mais um dia nublado na cidade de São Paulo. Fulano, como era de se esperar, acordou atrasado, pelado, de ressaca, com sapatos. Não entendeu nada. Também, pudera. Mal conseguira determinar que, primeiro, havia acordado, segundo, que aquela figura patética que via no espelho era ele e, terceiro, o que havia acontecido na noite anterior. Também não interessa o que aconteceu na noite passada, pensou Fulano. Pra frente é que se anda. O que eu não lembro não aconteceu, justificava, em sua consciência desprovida de qualquer culpa moral ou ética, ou até cristã ou judaica, a depender da crença religiosa de Fulano. Acordou. Demorou a entender que havia feito a transição do estado de sono completo para o estado de letargia completa. Olhou-se no espelho a imaginar que ainda sonhava, que aquela figura bizarra e pelada, só de sapatos, era uma figura importantíssima dos contos de fadas, o rei de Roma cuja roupa o rato roeu e que veio parar bem no seu sonho. Fulano foi trazido de volta à realidade concreta, definitivamente, quando o despertador da soneca tocou pela sétima vez, e como sete é um número sagrado, dizem, Fulano resolveu se mexer, não porque fosse o alerta sagrado da soneca, mas porque não aguentava mais aquele som estridente invadindo seus tímpanos de maneira a causar-lhe praticamente um derrame neural. Olhou novamente no espelho aquela figura constrangedora, sem quase se dar conta de que era ele próprio. Esse era o efeito da cachaça que ainda corria em seu sangue, em alto nível, já que em situações de sobriedade, que eram cada vez mais raras, tudo que importava para ele era sua percepção física e emocional. Se sóbrio estivesse, talvez não acordasse pelado só com sapatos, mas teria se detido na frente do espelho por muito tempo a admirar seu belo corpo com a barriga protuberante de cerveja, que outrora exibia um portentoso tanquinho. Mas, contudo, não acordara sóbrio. Havia tempos em que não acordava sem alguma ou algumas gotas ou copos de álcool em seu sangue. Levantou-se da cama fazendo um enorme esforço para manter a cabeça pesada em cima do pescoço desdenhou a figura grotesca do espelho e dirigiu-se ao banheiro para fazer suas necessidades especiais. Infelizmente não temos do que de fato aconteceu no longo período em que Fulano esteve abandonado à sua intimidade escatológica e higiênica, pois fez questão de trancar a porta. Ouviu-se barulho de água de pia e de chuveiro e de saliva saindo violentamente por entre lábios superior e inferior pressionados entre si. A famosa escarrada, que é um gesto de limpeza, muitas vezes se faz necessária à manutenção da integridade física de um individuo entregue à bebedeira na noite anterior e que acorda com uma ressaca das brabas. A escarrada, no mínimo, servirá para apagar o gosto de cabo de guarda chuva molhado e dar uma boa injeção de ânimo para começar o dia de maneira minimamente apresentável. Fulano destrancou a porta e saiu do banheiro, desta vez já vestido com a roupa que havia pendurado desorganizadamente no gancho atrás da porta. Ou, de acordo com o nível etílico de Fulano, é bem provável que o mesmo tenha resgatado suas roupas no chão, embaixo da toalha molhada ou dentro do bidê, junto com outras roupas usadas e bem sujas. Saiu cambaleando, chutando a porta do banheiro, tropeçando no fio do controle do vídeo game, quase caiu de cara no chão, o que serviu para despertar um pouco mais. Esfregou os olhos e, levantando-se vagarosamente, murmurou algumas palavras quase ininteligíveis, como putaqueopariu, caralho, o que que eu fiz ontem à noite, etc. Não lembrava o que fizera na noite anterior. Também, não importa. Se não lembra, pensou Fulano, é porque não aconteceu. Pra frente é que se anda. Esqueceu-se de pegar algo para comer e também esqueceu-se de preparar o cafezinho, como costumava acontecer nas manhãs que se sucediam às noites de bebedeira. Em jejum, de estômago vazio de comida e a cabeça cheia de cachaça, saiu em direção à mesa de centro da sala e, cambaleando, pegou a carteira e a chave do carro. E por falar em carro, era certo que chegara em casa dirigindo, mas não tinha a menor ideia de como isso se dera sem causar acidente algum. Algum milagre de Deus, talvez. Mas como Fulano não acreditava em Deus, nem em milagres, então tanto fazia. Alguma força maior o havia protegido no caminho de volta para casa. Talvez a própria morte, que resolvera dar-lhe mais uma chance de se endireitar na vida. Mas até quando? Saiu de casa, ainda cambaleando, deu uma bela escarrda no capacho que estava diante da porta do vizinho e chamou os dois elevadores. Que tipo de pessoa chama os dois elevadores? Até existe a possibilidade quando se trata de alguma emergência da ordem de logística do transporte condominial. Mas não se pode dizer, no presente caso, que se tratava de alguma emergência. Fulano estava apenas atrasado. Daí, podemos concluir, ao menos parcialmente, que tipo de sujeito é, qual a índole de sua personalidade. Fulano entrou no elevador que primeiro chegou. Estava atrasado e, portanto, não tinha tempo a perder. Apertou o botão da garagem. E como estava atrasado, o elevador levou muito mais tempo para chegar ao destino. É claro que essa percepção da passagem de tempo tem uma série de explicações científicas. Inclusive, é abarcada pela famosa lei de Murphy, que estabelece a perfeita oposição entre a necessidade do sujeito de que o tempo passe rápido e a passagem de tempo propriamente dita. Ou seja, trocando em miúdos, o que se está a dizer é que Fulano, já atrasado, tinha a sensação de que estava mais atrasado ainda, em virtude da morosidade mórbida do elevador. Finalmente, o elevador chegou à garagem. Fulano soltou um pum e saiu. Realmente, seu senso de civilidade era bem próximo de zero. E era um pum bem fedido, diga-se de passsagem. Deu três voltas inteiras para lembrar onde havia estacionado seu carro. Não foi suficiente. Na quarta volta, constatou que o carro não estava na garagem. Lembrou, de repente, que, de tão bêbado, nem tentara manobrar o carro. Deixou-o largado no meio fio da rua em frente ao prédio. Quando lá, chegou, após ter chamado os dois elevadores para subir um lance de escada, já havia duas multas por falta de cartão de zona azul. Percebera, então, que estava muito, mas muito atrasado. Se seu humor já estava consideravelmente abalado pela ressaca, ainda mais com o tempo perdido no elevador e na garagem procurando um carro que nem mesmo estava lá, imagina então como ficou sua braveza após constatar a presença de duas multas afixadas no limpador de pára-brisas. Ficou uma fera. Chutou sete vezes a roda de liga leve do carro que estava do lado, não o seu, é claro. Antes que pudesse se arrepender de seu ato impensado, e muito antes do dono do carro cuja roda foi severamente avariada poder tomar conhecimento da atrocidade acometida contra seu veículo, Fulano entrou em seu carro, que exalava um forte cheiro de vômito etílico, um misto de vários aromas, dentro os quais, claro, a cachaça, mas também a vodca, o uísque, o vinho, a tequila, o rum, o abscinto, o dry Martini e o sex on the beach. Abriu todos os vidros para ver se o fedor escapava de suas narinas. Pouco adiantou. Teria que conviver com seu próprio vômito até chegar ao seu destino. No lava-rápido não teria tempo de passar pois, como já se sabe, estava muito atrasado. Antes mesmo de ligar o carro, pôde visualizar um engradado de latinhas de cerveja, que tinha provavelmente esquecido na noite anterior. Há males que vem para o bem, pensou Fulano, esticando o braço e alcançando uma das latinhas. As mesmas estavam bem quentes, mas Fulano não costumava ser seletivo, ainda mais naquela situação de secura plena. Abriu a latinha de cerveja, a espuma quente eclodiu para fora, molhando sua mão e parte da camiseta amassada que vestira às pressas. Além de amassada, agora sua roupa estava também molhada e fedendo a cerveja quente. De uma golada só, virou goela adentro o líquido e, emitindo um sonoro arroto, amassou a latinha e a jogou janela afora. Deu a partida no carro e saiu do meio fio numa arrancada só, tendo quase atropelado um ciclista que passava, mas que não avistara a luz piscante do pisca pisca de Fulano, mesmo porque Fulano não havia ligado o pisca pisca. Aliás, o pisca pisca de seu carro já estava quebrado desde muito antes desse conto ter início, embora tal infração não nos convenha de forma alguma. Estava pra nascer o dia em que Fulano se importaria com os outros ao seu redor. Estava pouco se lixando. Após retribuir o xingamento ao ciclista, Fulano pegou mais uma latinha de cerveja e, com uma mão, já que a outra estava conduzindo o volante, abriu e virou o seu conteúdo garganta adentro num só gole. Deu mais um arroto e jogou a lata pela janela, desta vez tendo caído sobre o capô da Mercedes branca conversível de uma dondoca socialite, que apertou a buzina tímida e delicadamente, afinal era uma dondoca socialite. Outras tantas buzinas soaram, desta vez não tão delicadamente, quando Fulano avançou o sinal vermelho, fazendo um pedestre desviar bruscamente para evitar seu próprio atropelamento. Fulano nem sequer tomou conhecimento. Estava atrasado. No semáforo seguinte, aproveitou e parou no sinal vermelho para pegar mais uma cerveja, que consumiu novamente numa talagada só. Jogou a latinha pela janela. Alguém na rua gritou, seu porco, e Fulano respondeu com um gesto obsceno, fazendo erguer verticalmente seu dedo médio da mão esquerda. Quando esticou o braço para pegar uma nova latinha de cerveja quente do engradado, sentiu uma leve tontura. Também, pudera. Estava de barriga vazia. Não havia comido nem bebido nada, exceto todas aquelas cervejas quentes. A tontura súbita foi suficiente para perder levemente o controle da direção e quase fechar o carro que vinha pela faixa da direita. Guinando o veículo bruscamente, para não bater, e xingando o motorista vitimizado, abriu a quarta latinha e mandou pra dentro o seu conteúdo. O estrepitoso arroto coincidiu com o barulho do alumínio da lata batendo sobre o concreto do asfalto que, rolando até a boca do bueiro mais próximo, apenas o deixou um pouco mais entupido. Uma latinha a mais ou a menos, pensou Fulano, não faz diferença alguma. Continuou por seu caminho, acima do limite de velocidade permitida por lei, costurando os carros pelas faixas, fazendo de tudo para não chegar mais atrasado do que já estava. Teve que parar no semáforo. Ajeitou o espelho retrovisor e apertou o cinto de segurança, o que devia ter feito muito antes, antes mesmo de ligar o motor do carro. Ligou o rádio na estação do rock no máximo volume. Ao som de ‘No horizonte desta highway’, do Engenheiros do Hawaí, o sinal ficou verde e Fulano pisou até o fundo no acelerador. O pneu cantou e o carro saiu em disparada. Fechou, um, acelerou, virou a direção à direita, brecou, puxou o volante para a esquerda, acelerou novamente, o carro deu uma sambada e continuou em alta velocidade pela via. Sessenta quilômetros por hora. Sessenta e sete por hora. Setenta e três por hora. Deu em Fulano uma sede repentina. Setenta e nove por hora. Esticou o braço, mas não alcançou a latinha de cerveja. Agachou-se na tentativa de resgatar o engradado. Não logrou êxito. Oitenta e três quilometros por hora, mas ainda não conseguiu pegar a cerveja. Oitenta e seis por hora, se abaixou mais ainda e conseguiu, finalmente, pegar a latinha por entre as pontas dos dedos. Oitenta e oito por hora, noventa e um quilômetros por hora. Pegou a cerveja, tomou-a de num gole só e jogou pela janela a latinha, que atingiu uma velocidade de quase cem quilômetros por hora no sentido inverso. Após tudo isso, Fulano voltou a olhar para a via, logo no momento em que estava atravessando, fora da faixa de pedestre, um cachorro de rua, sem coleira nem dono. O pobre cachorrinho olhou para Fulano com um olhar de ‘pronto, já era, agora me vou embora daqui para o além, para o céu dos cães’, quando este, num ímpeto de reflexo, virou a direção muito bruscamente, fazendo o carro capotar diversas vezes, devido à alta velocidade, até bater frontalmente contra um poste de energia elétrica. Fulano bateu a cabeça no volante e, como a velocidade era enorme, o choque também o foi. Apagou. Desmaiou completamente ao mesmo tempo da batida de cabeça. De repente, tudo ficou em silêncio e o ambiente totalmente branco e brilhante, a ponto e ofuscar os olhos. Fulano viu passar diante de si o momento do acidente, em câmera lenta, assim como os principais momentos de sua vida, em que ignorara completamente a possibilidade de existência de outras pessoas ao seu redor. Sempre fora egoísta, egocêntrico, e essa era uma excelente oportunidade para se redimir, para extrair de sua consciência algum ponto de mudança. Mas, caso estivesse morto, então já seria tarde demais. Era o que se presumia. Fulano ficou seriamente receoso de ter passado dessa pra uma melhor, já que é notoriamente sabido que é exatamente nestes momentos apocalípticos que o filme da vida passa diante de si, e era o que Fulano conseguia identificar como o fato corrente. Estava, pois, à beira da morte. Em alguns milésimos de segundo, Fulano viu passar à frente dos seus olhos, em alta definição e sem legendas, o filme de sua vida, desde a sua primeira lembrança quando, pequeno, de fraldas, roubara a chupeta de seu vizinho no berçário. E os flashes foram se sucedendo na medida em que a personagem de si mesmo envelhecia. Depois, foi a bola de futebol que Fulano escondeu porque ninguém deixava ele jogar e, como era o dono da bola, resolveu que ninguém mais brincaria. Então, mais tarde, veio a construção de uma pipa cortadora – diz-se da pipa cortadora que ela possui um cordão revestido de uma massa de cola misturada com cacos de vidro, que tem o objetivo de cortar os cordões de outras pipas – que Fulano levava ao parque para cortar as pipas dos outros meninos e revendê-las na escola a preço de custo. Eram tantas as lembranças que lhe chegavam à mente, que chegava a ter vertigens, de tão rápidas que as imagens estavam sendo processadas por seu limitado cérebro. Veio o dia em que entrou na boate com documento de identidade falso, o dia em que colocou vodca no suco de laranja da menina, tendo-a seduzido com mais facilidade, e também teve o dia em que meteu um murro na cara do professor que lhe deixara de recuperação em aritmética. Nunca tivera paciência para estudar aritmética. E na passagem dos milésimos de segundo, parecia que o filme ia passando mais lentamente. Lentamente veio a imagem do dia presente, das várias cervejas tomadas de um só gole e das várias latinhas arremessadas e jogadas pela janela. E mais lentamente ainda apareceu diante dos seus olhos a imagem daquele cachorrinho, pobre coitado, sem coleira e sem dono, provavelmente pulguento, sarnento e faminto, que, perdido como se estivesse num dia de mudança, atravessou de repente na frente do carro em alta velocidade guiado por Fulano. E muito lentamente, quase parando, sentiu o impacto da batida e nada mais. Aos poucos, aquela imensidão brilhante e clara foi trazendo paz e serenidade ao coração de Fulano. Não sabia onde estava, mas sentia-se bem e confortável. Bem de leve, surgiu um microponto preto no centro daquela claridade ofuscante. Pouco a pouco, o ponto preto foi aumentando, aumentando e aumentando, até que, de repente, uma figura que Fulano nunca tinha visto, mas que era ao mesmo tempo muito conhecida e que pertencia ao imaginário do grande público, materializou-se bem na sua frente. Não havia escapatória. Fulano sentiu que o contato não se dava de forma apenas visual, mas energética. Era difícil de acreditar, já que Fulano não era lá muito ligado nesses lances de energia tântrica ou quântica ou seja lá o que for. O fato é que tinha sentido qualquer negócio de estranho que o prendia àquela figura, como um imã que não deixava ele se afastar. E quanto mais aquela figura se aproximava, mais sentia a conexão e mais forte sentia invadir suas narinas aquele cheiro insuportável de enxofre. Sim, queridos leitores, trata-se exatamente de quem estamos a pensar. Basta ver para crer. Aquela figura estava bem diante dos olhos de Fulano. Uma grande capa preta, um capuz cobrindo-lhe a cabeça, que era um vazio oco preto com dois pontos vermelhos de fogo fazendo as vezes dos olhos, uma fumaça cinza e espessa se dispersando rasteira e paralela ao chão na medida em que a figura deslizava flutuante para perto de Fulano, segurando uma foice prateada na mão direita. Se qualquer um pedisse a uma criança, por exemplo, para descrever uma figura que julgasse ser parecida com uma imagem que se assemelhasse à morte, a descrição daria conta, senão exatamente, de muitos detalhes da própria imagem que Fulano via à sua frente. Para todos os efeitos, portanto, e já sem poder negar, diante da obviedade dos fatos, Fulano estava diante de seu derradeiro fim, face a face com a morte em pessoa. Antes mesmo que Fulano pudesse pensar em perguntar algo à morte, como por exemplo, ‘é você mesmo?’, ‘O que faz aqui?’, ‘A que devo a honra?’, a morte soltou uma estrepitosa gargalhada, que fez tremer todo o seu corpo. A morte praguejou, com uma voz de trovão e bafo de enxofre, as seguintes palavras: ‘Ai, humanos, quanto desperdício de talentos, quanto potencial jogado fora, quanto egoísmo, só pensam em si, nos seus desejos, seus gostos, seus prazeres, suas realizações materiais, etc, etc, etc ‘. Não se sabe ao certo o que se passou na cabeça de Fulano para ter a audácia e a coragem de interromper o discurso efusivo, eufórico e moralizante da morte, mas o fato é que se ajoelhou diante de seus pés, que não conseguiu enxergar por causa da fumaça, juntou as mãos com os dedos entrelaçados em sinal de oração e começou a choramingar num tom lamurioso e ao mesmo tempo desesperado: ‘Por favor, dona morte, não me leve agora. Eu sou muito jovem, tenho tanto que viver. Desta vez, foi a morte quem interrompeu: Idiotas. Patéticos, vocês são. Sabem de nada, nem fazem questão de saber. Devia te jogar nas profundezas do abismo agora, num estalar de dedos’. Num ímpeto de estalar os dedos, a morte respirou profundamente três vezes, acalmou-se, e continuou dizendo: ‘Vamos fazer o seguinte combinado, meu jovem. Conceder-lhe-ei dez dias de vida. Ao final desses dez dias, eu voltarei para busca-lo.’ E afastando-se, saindo de cena às gargalhadas, ainda repetiu o discurso para ter certeza que aquele reles mortal insignificante tinha captado a mensagem. ‘Dez dias, entendeu? Você tem dez dias. No final, eu voltarei e te levarei comigo para as profundezas.’ E desapareceu na nevoenta escuridão, ao som de uma tenebrosa gargalhada, aquela que só a morte sabe dar. Fulano ficou paralisado. Nunca tinha passado por aquela experiência tétrica antes. Enfrentar a morte, assim, cara a cara, sentindo a cafungada do enxofre bem no nariz. Ao menos sabia agora no que consistia o famoso bafo do cão, a baforada do capeta. Era insuportável. Teve vontade de vomitar. Só não o fez porque era a morte e, em se tratando da morte, nunca se sabe o que pode acontecer quando se lhe vomita os pés invisíveis ou a face de breu oco e dois olhos de fogo. Dez dias. Será que os dez dias contados pela morte corresponderiam aos exatos dez dias contatos por um simples mortal? Seriam os mesmos dez dias? As mesmas duzentas e quarenta horas ou os catorze mil e quatrocentos minutos? Será que estava a morte falando dos mesmos oitocentos e sessenta e quatro mil segundos que Fulano contaria no relógio antes de embarcar dessa pra uma melhor? Nunca se saberá exatamente qualificar e equilibrar essas duas proporções, uma vez que Fulano não voltou antes do décimo dia, pelo menos à vida a que estava acostumado. Após a saída triunfante da morte, o impacto da notícia fatal causou em Fulano um misto de desespero e impotência. Queria poder voltar à ativa para resolver as suas pendências antes de zerar o cronômetro. No entanto, não conseguiu identificar, nos seus passos seguintes, qualquer similaridade com os objetos e pessoas e trajetos aos quais estava habituado, ainda que não lhes desse a importância devida. Queria poder voltar à sua casa para fazer um café e toma-lo ainda quentinho antes de sair às pressas para o braço da morte. Queria poder guardar o leite na geladeira, colocar a cueca suja pra lavar e mandar um email para a mãe com o fim de pedir desculpas por ter gritado com ela. Queria fazer tantas coisas, precisava resolver pendências muito sérias e duvidava que daria conta de soluciona-las em apenas dez dias. Ainda mais porque os tais dez dias não se apresentavam da maneira como esperava. Assim que a morte foi embora, deixando atrás de si um rastro de sombras e fedores sulfurosos, entrou em cena um enorme placar que indicava os dias, horas, minutos e segundos restantes. O cronômetro foi ajustado, à distância, provavelmente pela morte, para o tempo máximo residual. Tão logo ouviu-se a voz de trovão da morte dizendo ‘Lembre-se, Fulano, seus dias estão contados. O cronômetro já foi disparado. Nove dias, vinte e três horas, cinquenta e nove minutos e iguais segundos. Fulano, mais uma vez, desesperou-se com a hipótese de ter o seu tempo contado, hipótese esta que estava ganhando uma dimensão concreta sinistra bem diante de seis olhos, num sistema eletrônico de contagem regressiva de tempo. Realmente, era de se tirar o chapéu. A morte tinha à disposição o poder de manipulação de tributos tecnológicos, o que lhe concedia um caráter ainda mais temeroso. A morte, com a tecnologia a seu favor, tornava-se ainda mais perigosa. Era capaz de qualquer ato fatal. Desculpe pelo trocadilho redundante, o autor não resistiu ao gracejo. Fulano ficou momentaneamente paralisado, vendo os números dos segundos, um a um, se reduzindo até, finalmente, chegar novamente no valor máximo, mas em prejuízo do número representativo dos minutos, que também ia sendo reduzido. Quando voltou a si, o placar já indicava uma perda significativa de tempo. Tinha à sua disposição nove dias, vinte e duas horas e trinta e sete minutos. Resolveu se mexer. Sabia que, se bobeasse, quando menos percebesse, seu tempo já teria se esgotado. Então, nada mais justo que aproveitar seus últimos dias em alta classe, divertir-se até não poder mais. De alguma forma, que só se consegue explicar mediante alguns conceitos abstratos da esfera onírica, o que nos permite supor que Fulano estava sonhando ou até mesmo em estado de coma, o placar simplesmente desapareceu do nada e, de repente, surgiu na sua frente aquele cachorro pulguento, sarnento, sem coleira nem dono, que quase morrera atropelado. O cachorro olhou bem no fundo dos olhos de Fulano, o que causou um grande estranhamento, já que é sabido que seres caninos não tem a capacidade nem a habilidade e fixar os olhar, geralmente tem o olhar perdido, vago. Mas esse cachorrinho - o mesmo do acidente, e isso Fulano podia garantir – olhou fixamente para Fulano e perguntou: ‘Lembra de mim?’ O que não se pode definir é se o cachorro realmente falou no idioma que os seres humanos entendem, no caso o português, ou se, por tratar-se de uma espécie de sonho, o cachorro apenas latiu e Fulano apenas atribuiu ao diálogo o significado que bem pretendia. ‘Claro que lembro’, pensou Fulano, mas não chegou a expressar tal frase verbal ou sonoramente. ‘Então venha dar uma volta comigo’, disse o cachorro. Podia parecer apenas uma vaga ilusão olfativa, uma vez que estava sugestionado por todas aquelas novas informações, mas Fulano teve, por um breve momento, a impressão de ter sentido um leve aroma de enxofre saindo da boca do cachorro. Aquilo o deixou um pouco inquieto, preocupado. Será que a morte era capaz até daquilo? Transfigurar-se na forma de um cachorrinho vira-lata pra lá de fofo e simpático? E pensando por esse lado, agora fazia todo sentido que um cachorrinho - apenas uma fantasia da morte, tal como o lobo vestindo uma pele de cordeiro para ludibriar suas vítimas – fosse o próprio responsável pelo acidente. Se o cachorrinho não estivesse no meio da rua, Fulano não teria... Enfim... Logo esqueceu o assunto, tanto porque o aroma de enxofre se esvaiu, quanto porque o bichinho começou a abanar o rabo e levar Fulano para um passeio no parque. Mas o cachorrinho estava apressado. Saiu correndo em disparada na frente, fez xixi numa árvore de galhos tortos e folhas secas, em plena primavera, e entrou por um pequeno buraco, qual a toca do coelho da Alice no País das Maravilhas. Ao seguir o pobre cão, Fulano teve que se espremer todo para conseguir também entrar no buraco. Quando já estava totalmente do outro lado, reconheceu o inexorável aroma de enxofre, exalado no ar, empesteando o ambiente, mas não mais pôde avistar o pequeno cachorro vira-lata fofo e simpático. O ambiente, apesar de fedorento, estava vazio. Só o que havia era uma parede preta de concreto e, pregada nela, o placar da contagem regressiva, que indicava o número de seis dias, seis horas e seis minutos. Se Fulano tivesse um pouco do conhecimento e da experiência da qual se gabam os ocultistas de plantão, teria ele percebido a relação direta entre o cheiro do enxofre, o desaparecimento repentino do cachorro e os números visualizados no placar. Meia meia meia. A perspicácia de Fulano era direcionada apenas para questões de ordem material, física e até, pode-se dizer, fútil. Mas não conseguia, por exemplo, estabelecer qualquer espécie de relação entre o cronômetro regressivo, que contava três vezes o número seis, e a presença, ainda que sensorial, do abrenúncio. A morte lhe rondava, isso era certo, e até o mais descrente e cético não poderia negar tal evidência. E, para além do fato da morte se presentificar naquele placar, era também estranho o fato de já terem se passado três dias inteiros, quando, segundo a lembrança de Fulano, apenas tinha dado uma curta volta no parque, aonde o cachorro vira-lata o tinha levado para passear. Estava vivendo a vida real? Ou seria um sonho? Sim. Estava vivendo um sonho. O sonho dentro de outro sonho. Foi a conclusão a que Fulano chegou após perceber que tanto o passeio no parque quanto a contagem regressiva daquele placar estavam completamente desprovidos de qualquer senso de realidade, ao menos de acordo com a realidade que tinha vivido até então, antes do acidente. A noção de tempo estava completamente distorcida e equivocada. Havia perdido três dias inteiros num piscar de olhos. A partir daquele momento, Fulano sabia que não havia qualquer possibilidade de voltar no tempo. Já se iniciara o seu processo de resgate pela morte, que andava à espreita, à espera para dar o bote fatal. E lá vem novamente o trocadilho. Desculpem-me. Num outro piscar de olhos, a contagem regressiva já estava em quatro dias, duas horas, sete minuto e trinta e três segundos. Trinta e dois. Trinta e um. Trinta... Outro piscar de olhos e mais dois dias inteiros tinham se esvaído por suas mãos. Estava totalmente fora do controle da situação. Não se reconhecia mais. desta vez, o cachorro vira-lata sarnento e pulguento reapareceu, convidando-o a participar de uma grande aventura sobrenatural. Fulano ficou abismado. Novamente vinha-lhe o cachorro a tirar-lhe suas últimas impressões de realidade que ainda possuía. Isso porque, se Fulano fosse observador aos detalhes ao seu redor, coisa que nunca fora devido ao seu egocentrismo exacerbado, poderia ter notado que na ponta do rabo do bichinho formava-se uma espécie de garfo de três pontas, o tridente, objeto que Fulano desconhecia, mas que era largamente conhecido como o elemento fundamental do diabo, do abrenúncio, do sete pele. Mas Fulano, apesar das evidências que se mostravam cada vez mais claras, apenas tomava aquele bichano por um simples cão sarnento sem coleira nem dono, que resolvera aparecer em seu sonho. Disso estava certo. Estava vivendo um sonho, do qual não havia perspectivas de acordar. E nesse sonho, o fofo e simpático cachorrinho levou Fulano para uma nova aventura, desta vez para os meandros de um vale totalmente inóspito, que Fulano não reconhecia. ‘Que lugar é este?’, pensou. O cão, atento aos pensamentos de Fulano, disse que estavam adentrando no vale dos mortos e que essa seria sua nova morada. De repente, mãos esqueléticas brotaram do chão e começaram a agarrar os pés de Fulano, puxando-os para baixo e fazendo-o desequilibrar-se. Num rompante de fúria, Fulano berrou a pleno pulmões para que lhe tirassem dali e, como num passe de mágicas, todo aquele cenário macabro desapareceu, dando lugar ao velho e conhecido cenário, o placar gigante afixado sobre a parede preta de concreto, que contava regressivamente o tempo restante, apenas dois dias, três horas, quatro minuto e e cinco segundos. O tempo estava escorregando pelas mãos de Fulano. Estava sendo furtado o seu bem mais precioso, seus dias finais de vida, se é que se poderia dar àquilo que estava vivendo o nome de vida. Era sonho, apenas. Ou pesadelo, segundo o ponto de vista de Fulano. Não via a hora de acordar. Ou fazer logo a passagem. Assim como estava não dava mais para continuar. Bastou que esse pensamento lhe passasse pela mente e já o placar contava menos algumas horas. E foi o tempo de xingar o responsável por tudo aquilo, até a última geração, e só lhe restava apenas um dia. Se por um lado lhe arrebatava uma forte ansiedade, a imaginar o que poderia lhe acontecer no dia seguinte, por outro lado sabia sua angústia estava, finalmente, chegando ao fim. Estava prestes a conhecer o seu derradeiro destino, sua morada final. E antes mesmo de seu pesadelo chegar ao fim, ainda visualizou a imagem do cronômetro da contagem regressiva contando os últimos segundos, dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, ZERO. Ao fundo, a cada segundo que passava, Fulano podia ver o rabo do cachorro, com o tridente na ponta, sendo abanado de um lado pro outro, como se fosse o pêndulo do relógio que lhe tirava a vida. E antes de acordar, ainda pôde ouvir aquele chamado, aquela voz de trovão a lhe dizer: ‘Fulano, teus dias chegaram ao fim. Espero que os tenha aproveitado da melhor maneira possível. Entro em breve, virei te buscar. Ficarás comigo para toda a eternidade. E voz foi ficando pouco a pouco distante, deixando atrás de si um rastro de gargalhada macabra, aquela que poderia somente vir da morte e de mais ninguém. Não deu tempo de Fulano retrucar ou responder qualquer coisa. Simplesmente acordou numa cama de hospital, com uma agulha espetada no braço e uma enfermeira com um perfume muito agradável, que lhe acariciava a testa e dizia: ‘Finalmente acordou, senhor. Bem vindo a este lado.’ O que a enfermeira queria dizer com aquilo? Este lado? ‘Onde estou?’, perguntou Fulano. ‘Está no hospital. Na ala dos inconsequentes, digo inconscientes.’, respondeu a enfermeira. ‘Inconscientes? Como assim, inconscientes?’ esperneou Fulano, quase arrancando a agulha espetada no braço. A enfermeira, tentando acalmar Fulano, começou a fazer um cafuné e disse delicadamente: ‘Bom, quer dizer, creio que a situação deva ter sido alterada, não é? Quer dizer, digo, o senhor acordou, não é mesmo?’ Fulano estava confuso e com uma enxaqueca que lhe causou uma certa disformia facial, devido à dor que lhe arrebatava intensa e fulminante. A enfermeira entendeu aquela careta como cara feia, o que não deixava de ser verdade, posto que Fulano não é, nunca foi e jamais será enquadrado no padrão de beleza comumente estabelecido. Vamos ver como vai ser na próxima encarnação. ‘Não se preocupe’, disse a enfermeira, ‘Logo mais o doutor virá falar contigo’. A imagem percebida da enfermeira começava a ficar um pouco mais nítida, na medida em que fulano acordava. Já conseguia vislumbrar umas madeixas loiras acastanhadas por debaixo da touca de cor azul bebê, e belos seios fartos por debaixo do avental branco. O carinho excessivo da enfermeira, de suas delicadas mãos com as delicadas unhas coçando delicadamente a cabeça de Fulano, aliado à imagem um tanto quanto bela daquela mulher cheirosa e peituda com olhos azuis e lábios carnudos, causou-lhe, no sentido mais fisiológico do termo, uma intensa ereção. Não podia evitar. Esteve preso, incapacitado, imóvel, por dez dias. Sua testosterona estava explodindo dentro de si. E Fulano encontrara a válvula de escape. A enfermeira, com sua larga experiência, não se intimidou com o estado atual de Fulano. Estava acostumada a ver homens, crianças, jovens ou até senhores bem idosos terem ereção ao travar contato visual com seus dotes naturais. Realmente, era muito bonita e gostosa. E inteligente também. Tão inteligente que percebeu que Fulano, ao invés de ficar constrangido e envergonhado, encarou aquela ereção como um fato natural e expressou, através de seus olhos sedentos, um desejo incontrolável de conhecer aquela enfermeira, no sentido bíblico do termo. Apenas esse fato foi suficiente para a enfermeira suspeitar da verdadeira índole de Fulano. Era um mau caráter, um safado inveterado, sem limites, que só pensava em satisfazer seus desejos mais egóicos. Se estivessem num cenário diferente, em que Fulano estivesse em condições plenas de saúde e tivesse manifestado a intenção de apalpar alguma das partes da enfermeira, é mais do que certo, tanto quanto um mais um é dois e dois mais dois é quatro e dezoito mais dezoito é trinta e seis, que ela repeliria de maneira brusca o agressor moral e físico, seja com um tapa na cara ou um soco no queixo ou até mesmo um chute nas partes baixas, no saco, melhor dizendo. Contudo, o maior pecado de Fulano nos últimos dias foi ficar com o pênis ereto e esboçar um sorriso de cafajeste. Antes que pudesse dizer algo que constrangesse ainda mais a enfermeira, esta, a fim de evitar situações de estresse e fúria, afastou-se de Fulano, dizendo: ‘Está na hora da sua medicação, senhor’. E deu alguns passos em direção à bandeja de metal que estava posta sobre uma mesa ao lado da porta de entrada, sobre a qual se apoiavam comprimidos, seringas, vidros de remédios injetáveis, gases e afins. Fulano, imóvel, observava a movimentação da enfermeira, principalmente a movimentação de seu traseiro, debaixo daquela minissaia branca, rebolando de um lado para o outro, bem sensual e provocativo. Apesar, todavia, daquela maravilhosa, redonda e sedutora bunda lhe roubar a atenção por alguns momentos, é certo que Fulano começou a ficar um tanto preocupado. São três os motivos, com relação direta entre si, pelos quais Fulano foi atingido de um golpe só pelas memórias vívidas de seu passado recente. A primeira foi a lembrança do aviso da morte. Estava prestes a receber a derradeira visita. A qualquer momento, a morte poderia entrar de supetão, pela porta ou pela janela, ou simplesmente materializar-se no meio do quarto do hospital. E de repente, caiu-lhe uma ficha importante, o que levou Fulano a estremecer com o segundo motivo. Estava num hospital. Um hospital. Ora, qual seria o lugar perfeito para a morte vir buscar alguém? Nada mais propício. Do hospital, a morte conhecia de longa data o endereço. Fulano foi arrebatado por uma ansiedade incontrolável, uma necessidade extrema de sair daquele lugar. E, não mais que de repente, olhando para aquela bunda bastante aprazível aos olhos e aos desejos, caiu-lhe mais uma ficha fundamental para o deslinde da questão, tendo levado Fulano a perceber a gravidade do terceiro motivo. Lembrou-se de alguns filmes, moralmente questionáveis, a que tinha assistido algumas madrugadas antes de sofrer o acidente, em que uma bela dama se fantasiava de enfermeira e outra bela dama se fantasiava de diabinha. A associação no cérebro de Fulano foi imediata. A enfermeira era o diabo em pessoa. Como não havia percebido isso antes? Era claro como sete e sete são catorze e com mais sete, vinte e um. No exato momento em que Fulano vivenciava a eureka, a enfermeira virava para fulano com a seringa na mão, e uma gota fina de um líquido amarelo e viscoso saia da agulha, que brilhava ao ser refletida pela luz do sol que entrava pela janela semi coberta por uma cortina branca de transparência rendada. ‘Vamos lá, senhor, tomar o remedinho!’, disse a enfermeira, num tom cordial, mas severo. E vendo aquela enfermeira toda gostosona aproximando-se de sua maca, com um sorriso nos lábios e apontando uma seringa para o seu braço, pensou que, realmente, a enfermeira era a própria morte disfarçada, e que o tal remedinho era um veneno mortal. ‘A morte veio cumprir a sua palavra’, pensou, ‘terei que pagar a dívida’. Então, tal como um jogador que perde a aposta, Fulano resignou-se, não sem uma pontada de remorso pela vida desperdiçada, e entregou o braço esticado num tom de suicida. ‘Faça o que deve ser feito. Eu aceito o meu destino final’. E ao ouvir aquelas palavras de Fulano, a enfermeira achou tudo meio sem sentido, não só pelas palavras em si, mas porque o pobre coitado, ao dizê-las, se desmanchava em lágrimas desesperadas, mas contidas. Era a resignação em pessoa. ‘Quanto tempo demora pra fazer efeito?’, perguntou Fulano. ‘Esse remedinho é bem forte. Em apenas alguns instantes você já vai se sentir um pouco zonzo.’ E foi então que Fulano entregou-se de maneira a ser levado embora por aquela enfermeira gostosa que, sabia, em certa altura do caminho iria transfigurar-se em alguma figura bizarra, talvez o próprio cão, ou talvez a criatura de capa preta com capuz que deslizava sobre um tapete de fumaça. Entregue, Fulano apenas aguardava o desfecho derradeiro. Observou no relógio da parede mover o movimento do ponteiro dos segundos, e nada de fazer efeito o veneno mortal ministrado pela morte em pessoa. E a enfermeira gostosa indo de lá para cá e de cá para lá e, ao invés de passar dessa para uma melhor, começou a sentir-se mais disposto, mais animado, o que o fez imaginar que talvez aquela enfermeira gostosa não fosse a morte e que o remedinho fosse de fato um remedinho e não um veneno mortal. Estava livre deste pesadelo, pelo menos por enquanto. Ficou tão aliviado que até pensou em chamar a enfermeira pra sair quando tivesse chance de sair de lá, mas tudo ficou só no pensamento, pois a enfermeira já estava fora do quarto. Tinha, provavelmente, que ministrar outros remedinhos em outros pacientes, afinal, era uma enfermeira. Mas Fulano não deixou de sentir uma pontada de ciúmes. Mas a vida segue e Fulano, mais uma vez, estava livre para viver a sua vida. Assim que saísse do hospital, levaria uma vida normal. O problema era que não podia demorar tanto. Não podia dar sorte ao azar. Já tinha se livrado da morte em uma ocasião. Mas até quando poderia enganar a morte? E no hospital, essas chances eram mais difíceis. ‘Uma vez fora daqui, estarei livre para sempre’, pensou, ‘nunca mais a morte vai me ver pintada na frente, vou sumir, vou me escafeder’. E enquanto estava sozinho no quarto do hospital, não tinha com o que se preocupar. No entanto, era só entrar alguém que ansiedade e a angústia já lhe atacavam sumariamente, sem lhe conceder poder de reação. Ficava tenso, paralisado, enfim, chegaremos lá. De uma coisa sabia. Esse era o décimo dia. A morte viria lhe buscar, tinha certeza. A própria dita cuja lhe anunciara pessoalmente. Não havia como duvidar. E Fulano ficou com aquilo na cabeça, atormentando-lhe os nervos. Passadas algumas horas, já pelo fim da manhã, entrou o encarregado da refeição, com uma enorme bandeja de comida, saladinha, sopinha, suquinho, bolachinha, enfim, comida de hospital. Fulano, invariavelmente, deu início a uma busca incessante para analisar as possibilidades de riscos de morte iminente a partir do consumo daquela refeição. Pensou que poderia ter uma intoxicação alimentar ou então uma infecção hospitalar por conta da vulnerabilidade de seu corpo em digerir o brócolis ou a couve-flor ou até mesmo a cenoura cozida, o que fragilizaria seu organismo que, de algum modo, ficaria mais suscetível à contração de alguma bactéria ou vírus comumente encontrado no ambiente hospitalar, e que, portanto, poderia vir leva-lo ao óbito em apenas algumas horas. Contudo, toda aquela especulação absurda era mero fruto do processo caótico que atravessava o sistema nervoso de Fulano. Claro que, hipoteticamente, isso poderia acontecer. Mas, apesar da possibilidade remota de tal fato se concretizar, é claro que Fulano estava numa crise psicossomática e, por tal razão, estava surtando até mesmo com a comida do hospital e com o pobre coitado que a trouxe em cima de um carrinho ambulante. ‘Eu não vou comer essa porcaria. Sai daqui com essa merda.’, berrou Fulano a plenos pulmões, afugentando o cardíaco funcionário encarregado pelo transporte das refeições do hospital. Ufa, mais uma. Qual seria o próximo subterfúgio da morte para pregar-lhe a derradeira artimanha? Era preciso ter cuidado. Qualquer bobeada seria fatal. Literalmente. E logo depois, após alguns minutos que se tornaram eternidade em virtude do elevado nível de ansiedade que sofria Fulano, entrou no quarto a faxineira, com seu uniforme azul escuro, a toquinha de meia, o carrinho com o esfregador amarelo, uns panos de chão e, o que mais chamou a atenção do paciente, um pequeno frasco de vidro com um líquido dentro, que não se podia identificar. Tratava-se, portanto, de um borrifador, um lança perfume, como preferir chamar. O fato é que a associação imediata de Fulano, ao relacionar aquele borrifador, que poderia ser apenas um simples aromatizador para deixar o ambiente mais agradável às narinas alheias, e um gás mortal que seria expelido daquele sinistro objeto com a finalidade de dar cabo de sua vida, foi imediata. Aquela pobre faxineira poderia muito bem ser a própria morte disfarçada que, fazendo cara de coitada, se utilizava do pretexto de ter a obrigação contratual de limpar os quartos e ter a oportunidade de se aproximar de Fulano e espirrar em seu nariz o veneno mortal, fazendo com que suas hemácias inchassem e explodissem, causando-lhe uma hemorragia interna em questão de segundos. Não se podia confiar. Diante dessa imagem hecatômbica, Fulano optou por não correr riscos e despachou a faxineira aos gritos: ‘Sai daqui, demônio, filha do cão, etc, e xingou a coitada de todos os apelidos que conhecia para designar a morte, capeta, sete pele, abrenúncio, imortal, aquela que não se pode nomear, etc, etc. Num átimo de segundo, Fulano julgou que poderia ter passado do ponto, que estava sofrendo de alucinação, mas logo em seguida a sensação de arrependimento e remorso deixou-o apenas com o sentimento de ter vencido mais uma batalha contra a morte. Não fora dessa vez, ainda, que a morte conseguira pega-lo. Mas estava rodeando-o. Escapou por pouco. Seria preciso redobrar os cuidados, ao menos enquanto estivesse no hospital. Contudo, como as coisas da vida acontecem à revelia do nosso planejamento, é certo dizer que a previsão do futuro catastrófico de Fulano foi tomada, de um momento para outro, como falastrona e equivocada. Este exato momento foi precisado pela notícia que veio dar-lhe o médico responsável pelo plantão. Ao entrar no quarto, bem vestido com seu jaleco todo branco e o estetoscópio pendurado no pescoço, anunciou com a voz triunfante: ‘Hora de ir pra casa, Fulano’. Ora, vejam bem. Fulano já estava elaborando estratégias formidáveis para frustrar o intento da morte enquanto estivesse no hospital. E seria necessário, é preciso admitir, uma dose elevada de ousadia, coragem e, acima de tudo, sorte. Todavia, de repente, tal como um anjo caído do céu, um deus ex machina na sua carruagem chegando com a solução para todos os seus problemas, Fulano se viu extremamente abençoado. Não poderia ter mais sorte. ‘Posso ir embora daqui, doutor? Tem certeza que eu posso ir embora desse hospital?’ E o doutor perguntou: ‘Está sentindo-se bem? Sente tontura? Quantos dedos têm aqui? Aperte aqui, puxe ali... Você está ótimo, Fulano. Pode ir embora pra casa agora. Ou quer ficar um pouco mais por aqui? Ah, já sei, está esperando uma visita especial, hein’? Fulano, pensando que o médico estava se referindo à morte, afastou a hipótese com certa rispidez: ‘Que é isso, doutor, vira essa boca pra lá. Cruz credo, deus me livre. Visita especial, essa é boa. Morde essa língua. Eu vou embora é agora. Tira essa agulha do meu braço’, disse Fulano, já quase praticamente arrancando o acesso espetado na sua veia. ‘Ainda não!’, interrompeu o médico, impedindo que o mesmo arrancasse fora o aparato ao qual estava preso, o cabideiro de soros e medicamentos, o famoso “lulu”, o cachorrinho, que qualquer paciente tem que levar pra lá e pra cá. E aqui, fazemos um pequeno aparte. Adentremos, por instantes, no funcionamento cerebral de Fulano. Constantemente, a mente nos prega peças. A ilusão veio com tudo pra cima de Fulano. Isso porque, ao pensar na palavra cachorrinho, apenas visualizara aquele porta-trecos hospitalar, e não o próprio ser do gênero animal designado como cachorro, aquele com quatro patas e que abana o rabo quando está contente. Contudo, assim como é certo que três e três são seis, também é mais do que certo que a mente de Fulano lhe pregou uma boa. Ao ouvir a palavra cachorro, ainda que no seu subconsciente, inaudível sob qualquer aspecto, também ouviu, vindo do lado de fora da janela de seu quarto de hospital, um latido estridente. Reconheceu o timbre do latido e identificou que aquele latido só poderia vir de um cachorro específico, aquele cachorro que quase atropelara e que por diversas vezes viera atormentar seus sonhos. No entanto, Fulano não chegou a fazer a associação devida, posto que não era muito íntimo dessas empreitadas quânticas de origem ocultista. Ainda bem para o próprio. Se, por acaso, relacionasse devidamente sua ilusão olfativa à figura do cachorro, e essa, por sua vez, lhe remetesse uma associação direta à própria morte em pessoa, então Fulano teria tido um surto psicótico e, inevitavelmente, não poderia sair dali. Seria transferido, na melhor das hipóteses, para a ala dos lunáticos, mas não seria deixado sair do hospital, como vinha se desenhando na medida em que o médico explicava as vias burocráticas para a alta. ‘Ainda não!’, interrompeu o médico, impedindo que Fulano arrancasse o aparato ao qual estava preso, com todas aquelas medicações penduradas, todos aqueles fios entrelaçados, aquela agulha espetada no seu braço. ‘É preciso esperar a enfermeira trazer a papelada para o senhor assinar e, aí sim, poderá ir embora’. O médico ainda deu algumas informações finais sobre os efeitos colaterais que o medicamento intravenoso poderia causar, mas que não havia com o que se preocupar, pois dentro de alguns dias o mesmo seria eliminado pela urina. Também tranquilizou Fulano ao dizer que poderia sentir tonturas, devido à forte pancada na cabeça que tivera dias atrás. E ao se despedirem, o médico apertou a mão de Fulano e ainda disse ‘se você precisar de algo, pode ligar no nosso telefone, se não se sentir bem, pode voltar, passar bem, tenha um bom dia’,... Mas Fulano já estava com o pensamento distante e não percebeu que o médico já havia saído do quarto, deixando-o sozinho. A sorte finalmente lhe sorria. Poderia deixar aquele hospital a qualquer instante. ‘Serei livre!’, pensou. ‘Quero ver a morte me pegar agora, hahahahaha’. E soltando uma enorme gargalhada, cantando a vitória antes do tempo, Fulano pareceu não ouvir o latido agudo e esperneado de seu velho conhecido, o cachorro quase atropelado, aquele que lhe guiara pelos passeios e aventuras mais esquisitos e oníricos, diga-se de passagem. Antes mesmo de recobrar sua sanidade mental, antes de voltar de seu delírio egóico, por meio do qual jurava ter liquidado a morte, tendo-a ludibriado em algumas ocasiões, e tendo a certeza de poder repetir tal façanha por mais outras tantas vezes, não percebeu a saída do médico do quarto, nem tampouco a latida de seu velho e conhecido companheiro de jornadas que o aguardava do lado de fora, muito menos a entrada da enfermeira, que chegava com sua comissão de frente bem generosa e um suave e cativante aroma impregnado no lindo, liso e comprido pescocinho. Pela segunda vez naquele dia, se viu com a barraca armada. Não podia evitar. Aquela enfermeira era muito linda e gostosa. Quando a mesma se aproximou com suas mãos delicadas e aquelas unhas pintadas de azul petróleo, segurando um pedaço de algodão e um band-aid, Fulano sentiu percorrer em seu corpo uma onda de calor, um sangue superaquecido que saía de todas as partes de seu corpo e vinha se instalar bem lá, na sua genitália ereta e pulsante. ‘Sabe que dentro de alguns minutos, estarei livre para sair andando deste hospital, para nunca mais voltar’, disse Fulano perto do ouvido da enfermeira, com uma voz que julgava ser sensual, mas que na verdade só fazia constranger a pobre coitada, que, com uma cara de repulsa, terminou apressadamente o que tinha pra fazer e afastou-se dizendo: ‘Estou aqui para isso, senhor. Vim tirar o acesso do seu braço e entregar-lhe a papelada da alta para ser assinada.’ E deixando a prancheta com os documentos para serem assinados na mesinha ao lado da cama, deu dois passos para trás e ficou esperando com os braços cruzados e a cara fechada de poucos amigos. Estava decidida a não dar qualquer tipo de trela para aquele cafajeste impertinente. ‘Então, já que você sabe, hoje à noite estarei livre’, continuou Fulano, achando que era a última bolacha recheada do pacote, com a certeza absoluta de que estava abafando, prestes a conquistar o coração da enfermeira, deixando-a toda arrepiada com aquela voz sensual que tinha aprendido num desses filmes moralmente questionáveis que costumava assistir nas madrugadas de insônia. ‘Que tal se nós, você sabe, eu e você, talvez, quem sabe, tomar umas cachaças e dançar um forrózinho, sei lá...’ A enfermeira, simplesmente, para que Fulano percebesse de uma vez por todas que ele estava sendo totalmente inconveniente e que ela não queria sair com ele de jeito nenhum, nem que ele fosse o último homem vivo disponível no mercado, disse em volume de decibéis bem acima do permitido para distâncias curtas, bem pertinho do seu ouvido, as seguintes palavras: ‘Nunca, entendeu? Nunca! Quer que desenhe? Nunca!’. E saiu do quarto de Fulano, batendo a porta atrás de si. Fulano ficou meio que paralisado com o modo grosseiro com que a enfermeira o tratou. O que fizera de errado para merecer tal tratamento? Realmente, não percebia, não entendia, julgava aquele rancor da enfermeira para consigo meramente gratuito. Mas enfim. Pra frente é que se anda. Passado é passado. Se a enfermeira nada queria consigo, que assim fosse. Imediatamente, deletou a presença inebriante daquela enfermeira de sua mente, e disse para consigo: ‘Vamos nessa. Hora de ir embora.’ Levantou-se da cama com rapidez, tamanho era o desejo de deixar o hospital e esconder-se da morte, a fim de evitar que a mesma o pegasse de jeito, bem no momento de sua partida. Sentiu uma leve tontura, desequilibrou-se e apoiou-se na cama. Quando recobrou totalmente seus sentidos, deu alguns passos certeiros em direção à porta de saída, mas um barulho familiar lhe prendeu a atenção, fazendo com que se virasse no sentido da janela para ver do que se tratava. O latido do cachorro, aquele mesmo latido que, no passado mais que recente, havia ignorado inconscientemente, invadiu sua corrente sanguínea em ondas eletromagnéticas, fazendo vibrar seu coração e todos os seus nervos. Isso porque, assim que ouviu o latido, Fulano foi consagrado com um momento sublime da iluminação divina. Finalmente compreendera o que, até o presente momento, estava impossibilitado de desvendar. A associação precisa e direta entre aquele cachorrinho bem fofo e simpático, sem coleira nem dono, e a presença aterradora e cabulosa da morte, com a qual não se podia descuidar, se fazia totalmente clarificada. Estava à espreita todo o tempo. Ao tomar consciência do que estava prestes a acontecer, Fulano foi tomado por um assombroso temor. Simplesmente trancou a porta do quarto, como a impedir que o cachorro, que o esperava do lado de fora, entrasse no quarto. Todavia, é preciso ressaltar que a morte se utiliza de seus subterfúgios para ludibriar suas vítimas. Se Fulano pensava que a morte ia entrar pela porta do quarto e que, ainda mais, seria impedida por causa de uma mera tranca na fechadura, estava redondamente enganado. A morte tinha na manga várias cartas para fazer lograr o seu intento. Poderia simplesmente materializar-se na frente de Fulano, aplicando-lhe um belo susto pela ousadia de tentar enganá-la, ocasionando-lhe a morte súbita por parada cardíaca e respiratória fulminantes, ou então poderia transfigurar-se na figura da enfermeira, seduzindo-o e levando-o a um estado de torpor inebriante seguido de morte. Mas não era o caso. A morte estava resolvida a seguir o caminho que decidira tomar lá no início. O cão era a chave de todo o enigma. E Fulano estava prestes a descobrir isso. Assim que trancou a porta para impedir a passagem do cachorro, mal teve tempo de respirar, aliviado, e já avistou o próprio, pendurado na janela com a cabeça para dentro do quarto. Como era possível? A janela estava fechada. Qual era a possibilidade da mesma abrir-se, sem ajuda externa, de uma hora para outra? Como era possível que um cachorrinho daquele tamanhinho fosse capaz de abrir aquela enorme e pesada janela? E, para completar, como era possível que o cachorro estivesse entrando pela janela do quarto, uma vez que este mesmo quarto ficava no décimo terceiro andar de um prédio? Então lembrou que o cachorro era a própria morte e treze andares de altura não deveriam ser empecilho para que a mesma pudesse resgatar uma alma prestes a seguir seu derradeiro caminho. E, de repente, como num passe de mágicas ou um mecanismo tecnológico para mudanças de cenários e ambientações, todo o quarto do hospital sumiu do campo de visão de Fulano, restando, em sua mente, apenas o cachorro pendurado na janela com a cabeça para dentro do quarto. E, não mais que de repente, Fulano se viu imerso num universo onírico, parecido com o que vivera anteriormente após o acidente, a conversar com o cachorro em português. ‘Olá, Fulano, tudo bem? Finalmente nos reencontramos. Está pronto? Podemos ir? Basta me seguir’. E vendo o cachorro sair andando por um enorme descampado em direção ao horizonte, resolveu segui-lo. Nada mais fazia sentido. Todos os seus parâmetros de normalidade tinham caído por terra. Todas as relações concretas que possuía, todos os objetos a que estava apegado, como por exemplo, a porta do quarto do hospital com a tranca na fechadura atrás da qual quisera se proteger, ou a cama hospitalar em que se apoiara ao se desequilibrar levemente, ou o cachorrinho, não o disfarce da morte, mas o outro cachorrinho, aquele cabide de metal gigante onde se penduravam seus soros e medicamentos, todos esses objetos concretos tinham simplesmente desaparecido com todo o ambiente hospitalar, tirando de Fulano qualquer perspectiva de realidade. Quando menos se deu conta, Fulano estava seguindo o cachorro vira-lata, sem dono nem coleira, com um tridente na ponta do rabo e o bafo de enxofre. A paisagem era aterradora. Um enorme descampado árido à sua esquerda, sem uma alma viva nem penada a quem se dirigir, e, do lado esquerdo, um abismo tão, mais tão profundo, que era impossível a Fulano enxergar o fundo. ‘E se eu me jogar daqui de cima desse penhasco?’, pensou consigo mesmo, divagando sobre o futuro, que era incerto e bastante nebuloso. ‘Você poderia, sim, fazer isso, Fulano.’,disse o cachorro, em um português bastante claro. ‘Basta ter a coragem para tanto. Será que você consegue?’ E Fulano, sentindo-se desafiado no que considerava seu bem de maior valor, sua coragem, seus brios, não percebeu o paradoxo que envolvia tal desafio. Isto porque, se resolvesse ignorar o desafio da morte e optasse por não pular penhasco abaixo, salvaria sua própria vida, mas deixaria de honrar a si mesmo, desvalorizar-se-ia frente ao inimigo mais temido de todos os tempos, a própria morte. Por outro lado, se seguisse seus instintos e aceitasse a aposta da morte, a verificar a potencialidade de sua coragem e audácia, lograria êxito em demonstrar o seu valor, mas que, todavia, o levaria, finalmente, ao seu destino final e fatal. Ou seja, aceitando o desafio da morte e, consequentemente, provando o seu devido e verdadeiro valor, pularia para a imensidão do abismo e certamente se esborracharia lá no fundo. Qual seria a decisão mais acertada? Defender sua própria honra espatifando-se no fundo do abismo, ou poupar-se de tal despautério e prorrogar sua estada terrena por mais algum tempo? O que era incerto definir, todavia, era o tempo excedente que Fulano lograria usufruir caso não se atirasse penhasco abaixo. Poderiam ser alguns segundos, uns minutos ou horas. A única certeza que tinha é que daquele dia não passaria, já que a própria morte em pessoa o tinha incumbido de dispor de tal informação. Valeria a pena abrir mão de sua honra em razão de mais alguns instantes de sobrevida? Não. Definitivamente, não. A decisão havia sido tomada. Pularia em direção à imensidão do abismo, cuja distância para seu fim era incalculável. Não mais prorrogaria seu derradeiro destino. Se era assim que deveria ser, então que assim fosse, o quanto antes possível, sem qualquer adiamento inútil. E pulou. O tempo decorrido entre o instante em que Fulano se jogou para sua sina fatal e o momento em que atingiu o solo lá embaixo do penhasco é, como já se pode imaginar, haja vista que já foi dito, incalculável. Primeiro, porque não se pode precisar, nem mesmo a própria morte, a distância exata entre o ponto mais alto e o ponto mais baixo do abismo. Segundo, porque também não se pode calcular a velocidade que o corpo de Fulano atingiu na trajetória. Não se pode concluir, nesse caso, que a força da gravidade foi a verdadeira causadora da queda de Fulano. Outras forças não explicáveis pela vã filosofia poderiam ter interferido na queda, uma vez que não estamos, aqui, a falar de um ambiente em condições normais de temperatura e pressão, mas sim de um ambiente inóspito, com qualidades atmosféricas diferentes das que se costuma encontrar no mundo real. Ou seja, estamos a falar, basicamente, de uma estrutura de sonho, ou algo parecido. Nem mesmo Fulano fora capaz de decifrar, ao longo do trajeto, a distância ou velocidade percorrida. Havia muita névoa que lhe ofuscava a vista, sentia ao mesmo tempo uma mistura de calor intenso queimando-lhe a pele e um frio glacial que lhe fazia tilintar os dentes. Estava com a musculatura rígida, e ao mesmo tempo muito relaxado, de modo que assim que atingiu o chão, praticamente não sentiu dor alguma. Estava, como se diz por aí, inconsciente. Será que já estava morto? Conseguira a morte, finalmente, alcançar seu objetivo? Cumprira, afinal, a promessa que havia feito dez dias atrás? A partir de agora, se faz necessária uma mudança radical do ponto de vista da narrativa. Não mais a história poderá ser contada através da perspectiva subjetiva de Fulano. E o motivo é simples. Como se pode imaginar, Fulano, agora, está morto. Espatifado no chão embaixo do penhasco. Ou, analisando melhor, poderia se dizer que Fulano se encontra disposto de outra forma num outro cenário. Morto, ainda. Testemunhas garantem que Fulano morreu atropelado. Estava distraído andando pela rua, quando viu um pobre cachorro vira-lata, sem coleira nem dono, provavelmente, pulguento, sarnento e faminto, atravessando a rua, sem cuidado algum, fora da faixa de pedestres. Ao tentar salvar o pobre cachorrinho de um atropelamento atroz, foi, ele mesmo, empurrado por seu instinto para o meio da rua. Num ímpeto, num reflexo, num ato de bondade, Fulano pegou o bichano e o jogou para a calçada, para fora do perigo, momento em que foi atingido em cheio por um carro em alta velocidade, provavelmente dirigido por um bêbado, que não dava a mínima para ninguém, muito menos para a possibilidade nada remota de atropelar um pobre cachorrinho pulguento e sarnento. É importante dizer, aqui, somente para corroborar a índole insatisfatória de Fulano sob o ponto de vista moral, que o mesmo, em momento algum, remeteu tal comparação como evidência de seu próprio caso. Em outras palavras, Fulano não chegou a compreender a magnitude das questões universais com relação ao eterno retorno, de que aqui se faz, aqui se paga. Não chegou a estabelecer relação direta entre o acidente que quase causara ao atropelar o pobre cachorrinho e o derradeiro acidente do qual foi a vítima fatal. Porém, contudo, todavia, não fosse a atitude benevolente de Fulano, o cachorro estaria estatelado na calçada, com o seu rabo tridentado inerte e seu bafo de enxofre impedido de ser expelido da traqueia, uma vez que estaria morto. No entanto, é complicado imaginar que a própria morte em si poderia morrer atropelada. O que nos faz pensar que talvez essa fosse a derradeira artimanha da morte para levar Fulano embora para o lugar do qual não se tem conhecimento de que alguém tenha voltado, a não ser, é óbvio, a própria dita cuja. Algumas testemunhas ainda dizem que viram Fulano conversando com o cachorro no meio da rua. Teriam pensado que estava fora de si, louco, ou que não havia visto o carro chegando em alta velocidade ou que simplesmente era um homem com tendências suicidas, um depressivo crônico, por assim dizer. E, após o acidente, as mesmas testemunhas viram o cachorro dar uma lambida de despedida em Fulano, que jazia morto no chão, todo ensanguentado e espatifado, e sair de cena bem tranquilamente. Quando a ambulância chegou, já não era mais necessária. Chamaram o serviço funerário. E este foi o fim de Fulano. Á guisa de pósfácio, cabe relatar as últimas transmissões neurais registradas pelas sinapses do cérebro de Fulano, captadas no exato momento entre o atropelamento e os segundos seguintes, durante os quais iam caindo exponencialmente os batimentos cardíacos da vítima. Cabe dizer, ainda, que todo esse diálogo ocorreu no plano da atmosfera onírica. A conversa entre Fulano e o cachorro aconteceu, isso não se pode negar, mas não foi testemunhada por nenhum dos transeuntes que estavam na cena do acidente, posto que era uma ilusão, talvez a derradeira ilusão de Fulano. ‘Você por aqui?’, disse Fulano. ‘Chegue mais perto, deixa eu te fazer um carinho’. Estatelado no chão, a vítima fatal apenas observou o cachorro se aproximar, dar uma cheirada e uma lambida. ‘Se soubesses quem eu sou, não farias tal solicitação’, disse o cão. ‘A ignorância é uma benção, de vez em quando. O que não pode é ser ignorante por toda a eternidade’. E, antes de sair andando muito tranquilamente, deixando Fulano estatelado e ensanguentado na cena do crime, ainda disse: ‘Terás que se redimir no futuro. Na próxima encarnação, Fulano, terás que fazer muito melhor do que fizestes’.