UM CONTO INFANTIL DOIS

Por onde começar? Pelo começo. É um menino que viu a mãe ser levada pelos anjos da noite. O pai era bebum. A tia foi pro mar e deixou-o a ver navios. Madalena, casada com o irmão viúvo de sua mãe, da qual pouco ficara lembrança, não integrava um álbum sequer da família.
Voltamos ao menino. Um lugar. Trás-os-montes. O ermitão do trás-os-montes. Um boato. Ninguém sabe, ninguém vê. Uma sombra sobre a visão sócio-comunitária do cidadão comum. Lenda. O velho barbudo mora lá em trás-os-montes. Ninguém vai lá. Menos o menino, que receberá o convite mais especial e inusitado dos quais poderá se lembrar num futuro próximo.
Um senhor, o ermitão, o velho barbudo, aquele mesmo, apareceu no bar do Seu Beto e pediu uma cerveja. A imagem congela. O velho barbudo atravessou o salão, tal qual fosse uma câmera a passar lentamente sobre as montanhas verdes de ‘A Noviça Rebelde’. O espanto é geral. A paralização total. Tudo preto e branco. O velho, de verde, um chapéu e um manto, aproxima-se do menino, que já não tem pra onde ir. O menino foi fisgado. Um olhar de mel de águia conecta o outro, inexperiente e assustado olho. Brisa fresca e uma claridade de sol matutino se destacam. O velho estende a mão. O menino pega. O olho não desvia. O velho diz o que fará hoje depois do almoço? O menino diz nada. O velho então diz venha conhecer a minha casa. O menino diz a sua casa? O velho diz sim, aquela de cima da colina. Silêncio. O menino não responde...mas também não precisa. O velho sabe que o menino vai. E o menino, apesar de ainda não ter tomado decisão, sabe que irá na casa do velho, lá em trás-os-montes.
A manhã passa. Não tem fome. Mas é hora do almoço. Come. Bebe água. Escova os dentes. Vai. Começa a subir a colina. Mil pensamentos. Frio na barriga. Vamos lá. Chegou. Está mais frio. É muito alto. Dá pra ver uma cidade inteira. Bate na porta. Ninguém responde. Bate de novo. Silêncio. Uma terceira tentativa. A porta se abre. Barulho de porta abrindo em filme de suspense. Luz vindo do fundo do corredor, de onde se vê uma silhueta desenhada. Barba branca. A silhueta fica mais clara à medida que se aproxima. Bafo de azeitona curtida no azeite e berinjela. Palito de dente mordido em cima da mesa arranhada de madeira. O velho traz um pequeno frasco.
Boa tarde, meu filho. Diz o velho. Silêncio. O velho caminha para a poltrona que fica debaixo da janela da sala. Isso aqui, meu filho diz o velho apontando para o frasco que carrega em sua mão esquerda é a bebida púrpura. Você quer experimentá-la? Silêncio. Com a bebida púrpura, você sente um gosto maravilhoso de maçã, pêra, goiaba, laranja e mel ao mesmo tempo. O velho aproxima o rosto do menino e, arregalando os olhos, diz Esse gosto sobe pela garganta e invade os olhos, nariz, cabelo, e desce pelos braços e pernas. Uma gotinha dessa bebida, meu filho, é suficiente por um dia inteiro dos prazeres mais intensos.
O menino, de olhos esbugalhados, já quase sem reação nenhuma, estica a mão em direção ao frasco. Não há outra alternativa. O menino prova a bebida. Aquela única gota de bebida púrpura. De repente, a luz fica tão intensa que o menino chega a pensar estar cego.
E, então, tudo fez sentido. Todas as suas dúvidas de menino foram esclarecidas, angústias sanadas e desejos momentaneamente satisfeitos. Mas o mais curioso é o que viria a acontecer algum tempo depois, futuro incerto ainda, com perspectivas pouco eficazes no tocante à contação da história propriamente dita. Ninguém saberia dizer o que aconteceu com o menino mas, ainda que esse assunto fosse evitado nos círculos mais conservadores e pouco incentivadores das fantasias infantis, alguns se arriscam a dizer que o menino cresceu.

2 comentários:

  1. Seu Molina,

    Esse texto é ótimo.
    Atualíssimo...
    Um apertão no seu nariz vermelho.
    Marcia

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