EM TERRA DE CEGO, QUEM TEM UM OLHO É ENFORCADO Numa pequena aldeia ao norte do centro de um pequeno conglomerado municipal habita uma comunidade de velas de cera. Já de cara, devemos fazer uma breve interrupção na narrativa, posto que o leitor acaba de se deparar com uma aberração sob o ponto de vista do senso comum da realidade. Ora, é difícil de imaginar uma comunidade de velas de cera. Pois sim, leitor, é isso mesmo. Sigamos adiante. Essa pequena aldeia, ao norte do centro de um vilarejo qualquer, é povoada por seres, digamos, inusitados. São velas, sim, velas de cera. Devemos destacar um individuo muito peculiar, dentre todas as velas, em especial. Trata-se do reverendo mor da comunidade, que exerce a função de orador, aconselhador, tutor, administrador, condutor – bem como outros adjetivos atribuídos ao exercício de estabelecer certo poder moral, ético, religioso, espiritual e físico sobre os outros – das demais velas da comunidade, que, na grande, imensa e esmagadora maioria das ocasiões, o reverencia, qual um grande papa da comunidade católica ou um grão rabino da comunidade judaica ou um grandioso aiatolá da comunidade muçulmana e... acho que já está claro o ponto da questão que necessitamos aqui abordar. Sigamos adiante. E de forma ecumênica. E desprovidos de qualquer preconceito de cunho religioso. O Grão Velão, nosso personagem principal, é uma vela enorme, robusta e bem cerosa. Sim, prezados leitores, nosso Grão Velão é uma vela de quarenta e nove dias, a mais poderosa, a mais majestosa, a mais inexoravelmente grandiosa. Seu pavio possui nada menos que vários e vários centímetros de comprimento, uma coisa bonita de se ver, brilhante por conta da parafina, que sobe deslizante em busca do céu infinito, qual uma cobra naja pronta para dar o bote. Nos ritos cerimoniais, é possível ver o Grão Velão exibir sua alta chama, que aquece o espírito e ofusca o ego de todas as pequenas velas da comunidade, que simplesmente ficam hipnotizadas por tamanha beleza e harmonia que exala pelo ar da pequena capela da pequena aldeia ao norte do centro do pequeno conglomerado municipal de algum vilarejo qualquer. Grão Velão, no exercício do culto, é edificante. Domina a oratória de maneira precisa e cirúrgica. Com poucas lufadas de ar, sua chama cambaleia no ar em determinada forma geométrica, – vale concluir, de forma objetiva, para a boa compreensão do presente conto, que cada forma geométrica das chamas das velas representa uma determinada ação ou discurso, de forma que é possível observar quase que uma quantidade infinita de formas geométricas das chamas, que por suas vezes, representam outra quantidade quase infinita de palavras - o que é imediatamente repetido por todas as pequenas chamas de todas as outras pequenas velas da comunidade. Grão Velão é um líder nato. É seguido em todas as opiniões, das mais variadas estirpes. Tampouco, pode-se dizer, seria prudente mencionar que as velas da comunidade sentem-se intimidadas pela presença majestosa de Grão Velão, de modo que se lhes é podada a possibilidade de livre arbítrio e expressão. Tal hipótese seria imediatamente velada, com o perdão do trocadilho, pela mídia local. Pode-se sim, dizer, que Grão Velão domina também a imprensa. Mas isso não vem ao caso. Voltemos ao que interessa. Para além da relação de liderança religiosa estabelecida por Grão Velão, é certo dizer que a comunidade também atua no ramo comercial. Todas as pequenas velas, juntas, sob o comando rígido de Grão Velão, são uma empresa de prestação de energia térmica, talvez a maior da região. Nos dias de extremo inverno, os cofres da comunidade de Grão Velão se enchem de moedas de ouro e prata, diamantes, rubis e esmeraldas. Isto porque, os vizinhos da região são bastante ricos e o inverno é bem rigoroso. Os termômetros chegam a registrar a temperatura de dois ou dez ou quarenta graus abaixo do zero. Nesses dias, a produção da empresa Gran Velada chega aos limites máximos de sua capacidade. Só não contratam empregados extras porque não há velas que não sejam empregadas pela empresa de Grão Velão. A Gran Velada, pode-se dizer, é uma empresa estatal, se é que a comunidade de velas do pequeno vilarejo do pequeno conglomerado pode ser chamada de Estado. Então, em caso afirmativo para a hipótese anterior, deve-se também afirmar que Grão Velão é o chefe de Estado. O presidente, primeiro ministro, imperador, rei, xeique ou que nome se queira dar ao cargo de máxima autoridade da comunidade de velas. O fato é que Grão Velão manda e desmanda. Seja por meio dos discursos religiosos na capela, seja por meio do pulso firme com que comanda a empresa de distribuição de energia térmica Gran Velada, a maior da região. A autoridade de Grão Velão é tamanha que toda a comunidade teme mencionar seu nome. Optam por apelidos ou codinomes para denominá-lo, como por exemplo, o Mestre, o Maioral, e aí por diante. E, como é próprio da vida de qualquer Grão Mestre, pode-se dizer que a vida de Grão Velão também é recheada de inúmeros boatos e estórias contadas de boca a boca. E tais estórias continuarão seguindo de boca a boca, desde que o próprio Grão Velão não a descubra – a boca responsável pelo boato - e se lhe mande apagar a chama, numa alegoria simbólica da própria morte. Ouve-se por aí que, certa vez, uma certa vela de sétimo dia, com já uma certa idade nas costas e que é considerada uma figura de respeito e admirada pelas demais velas da comunidade pela capacidade de dizer coisas sensatas, estava a andar por aí dizendo ter ouvido uma certa estória de uma vela de aniversário que estava ali de passagem para visitar alguns parentes, e que segundo essa vela de aniversário que estava lá apenas de passagem, costumava, não raramente, ouvir dizer estórias e boatos sobre Grão Velão, nas localidades de uma região distante e longínqua da comunidade de velas, onde Grão Velão não pudesse ser capaz de intentar contra a segurança dessa tal vela de aniversário, responsável por espalhar o boato a seu respeito. Tratava-se de um conto surpreendentemente fantástico, de tamanha atrocidade, mas cuja autoria não teria sido possível provar. O fato de a história correr à boca pequena fora das cercanias da comunidade se devia em virtude da impossibilidade de Grão Velão tomar conhecimento de tal boataria, pois, caso isso se sucedesse, como acabou de ser dito, certamente cabeças iriam rolar. Por outro lado, o fato de tal boato não poder ter sido provado se deve, exclusivamente, ao fato de que Grão Velão também dominava o grupo de magistrados e juristas responsáveis por averiguar fatos, julgar condutas e aplicar punições e castigos. Mas também isso não vem ao caso. Devemos nos ater, neste momento, ao teor bizarro do boato que, em uma região ao largo das cercanias da comunidade comandada por Grão Velão, era dado como verdadeiro, o que contribuía de forma determinante para ilustrar a capacidade moral e ética de Grão Velão em lidar com seus súditos. Diz-se que, certa vez, contou-se uma estória, uma dessas estórias que quem ouve tem um estremecimento repentino de temor e repulsa, e que esta estória foi sendo transmitida à boca miúda, e que depois de muitos e muitos anos, esta tal estória chegou aos ouvidos de uma certa vela de aniversário que estava de passagem pela comunidade de velas para visitar sua tia-avó, a tal vela de sétimo dia da qual falamos anteriormente, respeitada pelos demais e admirada pela sua capacidade de dizer coisas sensatas. Conta-se que, certa vez, muitos e muitos anos atrás, Grão Velão, que hoje em dia é uma grande vela de quarenta e nove dias, era apenas uma vela comum. Mas sua sede pelo poder era algo inexplicável e incontrolável. Conta-se que Grão Velão, para crescer e tornar-se esta vela portentosa que se tornou, utilizou-se de subterfúgios mágicos, de feitiçaria e magia negra, que acarretou no desaparecimento de uma grande quantidade de velas, das quais hoje em dia não se tem mais notícia. Diz-se que, certa ocasião, Grão Velão reuniu todas as velas deformadas, com um pedaço faltando, e as trancou num grande galpão de madeira. Num só movimento de atrito entre as mãos que seguravam respectivamente um palito de fósforo e uma caixa de fósforo, provocou um enorme incêndio, cuja dimensão nunca se tinha tido notícia anteriormente, nem nos tempos mais remotos. É certo dizer que todas as velas deformadas, com um pedaço faltando, desmilinguiram-se no ardor do fogo do incêndio. Como já é possível imaginar, pois, Grão Velão, que até então era uma vela comum, enxertou em si toda a cera derretida das velas queimadas e inutilizadas, transformando-se na maior e mais grandiosa vela de que se teve notícias, uma portentosa e magnífica vela de quarenta e nove dias. Conta-se, ainda, que, no lugar do galpão destruído pelo incêndio, Grão Velão mandou construir uma enorme capela, ao menos para os padrões daquela pequena comunidade de velas, e intitulou-se, ele próprio, o primeiro e único chefe religioso daquela comunidade, responsável por manter a ordem da comunidade de velas. Não se sabe ao certo se a tal estória tem algum fundo de verdade, mas a julgar pela representatividade da figura de Grão Velão, sempre majestoso e autoritário, carinhoso e enérgico com seus súditos, é possível imaginar que tal boataria tem alguma procedência bem fidedigna aos princípios fundamentais da verdade. O fato é que, até onde se tem notícias, Grão Velão, desde o início dos tempos, ao menos para as novas gerações de velas, exerce a máxima autoridade religiosa e democrática. Todos o têm na mais alta estima e consideração. Não se atrevem, por outro lado, a tomar alguma iniciativa contrária às suas orientações, no sentido de incitar alguma discussão ou ponto divergente no correto e organizado asseio familiar da comunidade de velas. Afinal, este é o trabalho de Grão Velão, zelar pelo conforto e bem estar de todos os seus súditos, quer dizer, funcionários, quer dizer, contribuintes, quer dizer, cocidadãos. Bem, creio que fugimos um pouco da linha de raciocínio que aqui queríamos abordar. Será necessário retomar certo aspecto da figura de Grão Velão, e da comunidade em si, como um todo. Isto porque, Grão Velão não só é a autoridade máxima religiosa da comunidade, responsável pelo bom andamento da ordem moral e ética, na medida em que faz cumprir o seu zeloso trabalho de obrigar a todos a frequentar suas missas, que acontecem todos os domingos na capela. Grão Velão, por outro lado, também é a autoridade máxima no âmbito comercial da comunidade, responsável por trazer aos seus moradores o conforto pecuniário e o bem estar financeiro. É certo que não se pode dizer que todos ganham igualmente, já que estamos a falar de uma estrutura capitalista, onde quem pode mais recebe mais. E, é claro, não se pode deixar de perceber que, neste caso específico, Grão Velão é o maior de todos os beneficiários dos lucros advindos da empresa Gran Velada. Como já se disse anteriormente, a Gran Velada é uma empresa de distribuição de energia térmica, produzida a partir da pequena chama de cada vela, que se acende ao anoitecer. Nesse sentido, é até justo que Grão Velão obtenha a maior fatia lucrativa das benésses advindas da empresa Gran Velada, uma vez que é ele próprio, uma vela enorme de quarenta e nove dias e com uma chama imensa e reluzentemente brilhante, o maior produtor da energia térmica, responsável por mais de três por cento da produção mensal da empresa. No entanto, é preciso salientar que o foco da presente narrativa não está devidamente alinhado com este tipo de questão. O que queremos aqui abordar é um outro aspecto da condição moral e ética de Grão Velão, que é o de zelar pelo bem estar e conforto de seus cocidadãos, como aqui já outrora se averiguou. E para isto, passemos a introduzir um fato que se deu num certo dia, que modificou para todo o sempre a estrutura emocional da comunidade, bem como de todas as outras comunidades que, por ventura, poderiam vir a travar algum tipo de contato com a comunidade de velas comandada por Grão Velão. Tudo começou numa manhã ensolarada de domingo, quando todas as velas, sem exceção, estavam reunidas na capela para a grande cerimônia liderada por Grão Velão. Em seu sermão, o mesmo encontrava-se, imponente, diante de todos os seus súditos. Numa voz de trovão, fazia saber a todos que a obediência é uma virtude moral que deve ser cultivada a qualquer custo. Assim bradava Grão Velão, aos olhos e ouvidos de todos: “Hoje, meus caros e queridos companheiros, estamos aqui reunidos por uma razão muito especial. A celebração de mais um ano em que comemoramos nossa independência religiosa, social e financeira. Não dependemos de ninguém. Nenhuma outra comunidade ou grupo de pessoas está à nossa frente. A energia térmica, produzida por nós, e por apenas nós, é o futuro da nação. Todos dependem da energia que produzimos, etc, etc, etc”. E alguém que estava bem embaixo do púlpito ocupado por Grão Velão, talvez um primeiro subordinado e assistente para assuntos gerais, seu chamado ‘testa de ferro’, gritou bem alto para que todos pudessem repetir: “Viva Grão Velão, Viva Grão Velão”. E todos, sem exceção, repetiram em alto e bom som: “Viva Grão Velão, Viva Grão Velão”. E o discurso de Grão Velão seguiu por mais três quartos de hora, tomando devidamente a atenção e a admiração de todas as demais velas presentes no recinto. A capela estava lotada, não cabia mais ninguém, nem mesmo uma velinha aromática, decorativa e bem pequenina que, se quisesse estar presente, não poderia, por falta de espaço. Mas também esse não era o caso, pois todas as velas da comunidade, das menores às maiores, estavam presentes. A cada frase dita, a cada pensamento concluído, a cada respiração mais longa dada por Grão Velão, ouvia-se o murmurar de aprovação por parte da comunidade de velas. “Viva Grão Velão”. É certo que todos concordavam absolutamente com o teor verídico das palavras de Grão Velão, independentemente do tipo de coerção que os levou a ter todos o mesmo tipo de comportamento e opinião. E Grão Velão seguia com seu discurso de engrandecer e eternizar a importância da energia térmica, bem como sua relevância para o futuro da humanidade, sempre com o aval das demais velas espremidas na capela, que eram vigiadas pelos guardas de Grão Velão, que vigiavam de forma velada, – desculpem-me, novamente, pelo trocadilho - escondidos dos olhos de todos. “Viva Grão Velão, Viva Grão Velão”. Após a cerimônia, quando a noite já ia caindo e a primeira estrela tomava o seu devido lugar no céu, Grão Velão fez saber a todos que daria uma grande festa para comemorar os bons resultados daquela safra anual. As metas da empresa Gran Velada superaram todas as expectativas. A energia térmica produzida no comando de Grão Velão atingiu a impressionante marca de não sei quantos milhões de megawatts, suficientes para iluminar e aquecer centenas de lares ao longo dos vales que cercavam a pequena aldeia ao norte do centro do conglomerado municipal, num raio de várias e várias centenas de metros de onde morava a comunidade de velas liderada por Grão Velão. A festa seria ao ar livre, sob a luz do luar, em frente à capela, onde seria construída uma enorme fogueira, que deveria ficar acesa até bem tarde da noite, madrugada adentro. A fogueira seria equivalente à potência da chama de mais de mil velas reunidas, ou então de apenas algumas dúzias de velas do porte do nosso personagem Grão Velão. Uma fogueira cujo fogo arderia por várias horas consecutivas e cuja luz seria vista até mesmo nos mais distantes sítios daquele povoado. E não se fez diferente. O calor imenso e o brilho irradiante e ofuscante eram temerários. Poderia queimar o pavio de alguma vela de imediato, ou derreter-lhe a cêra de súbito. Uma fogueira de respeito, portentosa e bela, calorosa e muito bem iluminada, cuja explosão dos gases fazia estalar a madeira de forma rítmica e harmônica, conduzindo todas as velas para uma embalada dança circular ao seu redor. E a celebração da festa, como já se disse, durou até altas horas. O céu já estava muito estrelado e não se via nenhum vislumbre de alguma luminosidade solar. Apenas o branco das estrelas e o amarelo esplendoroso da fogueira. Foi só quando, após a coruja piar, quase na hora do galo cantar, que a imensa fogueira foi se apagando, devolvendo ao cenário a escuridão da noite que lhe é peculiar. Todas as velas já estavam voltando cada qual para sua residência. Grão Velão ia se despedindo e recolhendo-se à capela, sua verdadeira morada. No entanto, num átimo de segundo, efetivou-se aquilo que jamais poderia se imaginar, e que foi o grande ponto de mudança de toda aquela comunidade, até então pacata e inofensiva, ao menos para o conhecimento da grande mídia. Quando toda a aldeia ao norte do centro do conglomerado municipal já estava se preparando para dormir, antes mesmo do primeiro raio de sol despertar por detrás da nuvem escondida pela escuridão da noite, um grupo de velas que se preparava para deixar a fogueira já extinta visualizou um ponto luminoso bem ao longe. Cerraram os olhos de modo a enxergar melhor aquilo que ainda não conseguiam identificar. Ainda sem entender do que se tratava, apontaram para o lugar de onde vinha aquela luminosidade e compartilharam sua dúvida com as demais velas que ainda não haviam deixado o local. “O que é aquilo?”, uma delas perguntou. A outra respondeu: “Não tenho a mínima ideia”. Uma terceira ponderou que poderia ser o brilho de uma estrela que já não existia há milhares de anos luz. Porém, o que é certo dizer é que todo aquele bafafá que começou de forma repentina ao redor da fogueira extinta despertou o interesse de Grão Velão, que se voltou para trás e se deparou com o ponto de luz não identificado. Até o nosso líder nato, o heroico e bem aventurado Grão Velão, perdeu todas as referências do que poderia significar aquele ponto distante, brilhante e luminoso, meio branco meio azulado, bem no final do horizonte, quase onde o céu faz a curva. Numa voz tonitruante, Grão Velão reuniu um grupo de velas, das mais resistentes, e ordenou que fossem buscar aquilo, seja lá o que fosse, seja lá onde estivesse. E o grupo de velas foi em busca daquele ser brilhante não identificado, que estava sendo o objeto de espasmo e espanto por parte da comunidade local. Enquanto o grupo incumbido de trazer ‘aquilo’ não voltava de sua longa jornada, todos os demais membros da comunidade de velas ficava reunido na capela, discutindo as inúmeras possibilidades que poderiam advir daquilo tudo. Imaginem só, se fosse uma vela cuja chama pudesse ser vista a centenas e centenas de metros de distância? Se fosse uma vela muito maior e muito mais poderosa de que o líder que todos seguiam mediante a maior devoção? Grão Velão, claro, estava bastante preocupado com o destino de sua comunidade, de seus súditos e, é óbvio, com o seu próprio futuro. E se fosse ameaçado por uma força térmica e luminosa maior que a sua, diante da qual se visse impossibilitado de juntar forças e lutar contra? Sete noites e sete dias se passaram até que o grupo selecionado para a empreitada voltou ao lar. Logo que estavam chegando pela estrada, todas as velas se juntaram ao redor do séquito, que carregava uma caixa fechada com pregos a marteladas. No seu interior, diziam, carregaram, por incansáveis quatro amanheceres, o prisioneiro, que fora resgatado no meio do caminho. Antes de a caixa ser aberta e o prisioneiro revelado, todas as velas abriram caminho e deixaram que o grupo passasse, para proceder à primeira triagem com o líder Grão Velão, que autorizou a passagem do grupo que carregava o prisioneiro à capela. Chegou o momento da revelação. Todos estavam apavorados, não sabiam o que esperar. Com exceção de Grão Velão, que exibia uma tranquilidade taciturna, as demais velas vacilavam com suas chamas, que quase se apagavam com o sopro de mistério que pairava no ar. Contudo, ainda que Grão Velão aparentasse estar seguro com relação às possibilidades sobre o futuro de sua comunidade, é certo que, por dentro, estava se derretendo todo. Mal conseguia ficar em pé, de tão nervoso que estava. Sua chama, ainda que continuasse brilhante e esbelta, estava vacilante e soprando um ar rarefeito na direção contrária, sinal de que não estava, absolutamente, no controle da situação. Ainda com sua voz tonitruante, mas um pouco rouca, ordenou aos súditos que abrissem a caixa para fazer revelar o prisioneiro. E, como seu desejo era uma ordem, o prisioneiro foi colocado para fora da caixa, exibindo um brilho intenso de cor branco azulada, coisa que nunca se vira até então, principalmente por aqueles lados, onde reinava, dominante, a cor amarelada das chamas das velas da comunidade sob seu comando. Apesar de amedrontado, o prisioneiro foi ordenado para sair da caixa. Devagar, cuidadosamente, para que ninguém tomasse um susto e algum movimento estapafúrdio tomasse conta. Passo a passo, o prisioneiro foi indo em direção ao lugar apontado por Grão Velão. Foi deitado e amarrado ao chão para que as demais velas o pudessem analisar com mais rigor e cautela. Ninguém entendia muito bem de onde vinha aquele brilho intenso azulado do prisioneiro. A partir de então, teria início o interrogatório. Grão Velão, adotando uma postura ameaçadora, voltou-se para o prisioneiro e perguntou: “De onde você é, prisioneiro?” Ao que este respondeu: “Venho de muito longe, de um lugar bem distante do chão”. Grão Velão, assim como as demais velas, ficaram confusas com a resposta do prisioneiro. “Explique-se melhor!” E o prisioneiro continuou, sob as caretas ameaçadoras das velas: “Eu venho do Farol da Barra”. “Farol da Barra?”, perguntaram as velas em côro. “Sim, Farol da Barra, um farol construído na encosta do mar para impedir as embarcações de atolarem”. A resposta completa do prisioneiro deixou as velas ainda mais confusas. Grão Velão começou a ficar bastante irritado, coisa que acontecia quando perdia o controle da situação. Não sabia ao certo com o que estava lidando e, portanto, resolveu engrossar no interrogatório. “Então quer dizer que você mora no Farol da Barra. Ouviram essa? Ele mora no Farol da Barra!” E soltou uma sonora gargalhada, gozando da cara do prisioneiro. E todos os súditos de Grão Velão o seguiram na gargalhada, não tanto pelo teor humorístico do comentário, mas porque assim deviam proceder, já que o chefe, o mestre os havia, implicitamente, ordenado. “E me diga apenas uma coisa”, continuou Grão Velão com seu discurso, “o que exatamente você faz por lá?” E o prisioneiro, pacientemente, mas apavorado, explicou: “Sou uma lâmpada, uma lâmpada de neón, responsável por iluminar o caminho das embarcações que chegam e saem do porto”. E Grão Velão, de maneira imponente e zombeteira, disse: “Hummm, então você é muito importante, é uma lâmpada, uma lâmpada de neón, muito bem, parabéns”. E soltou outra sonora gargalhada, que logo foi imitada por todas as velas que se encontravam no recinto, dentro da capela. Mas tão logo passou a graça da piada, a verdadeira ficha caiu para Grão Velão. Num átimo de segundo, veio à tona toda a carga de informação de que necessitava para se assegurar do perigo que o futuro de sua comunidade sofria. “Saiam todos daqui, imediatamente. Todos”. E num gesto bem ríspido, explusou todas as velas para o lado de fora da capela. “E o que fazemos com o prisioneiro, chefe?” Perguntou uma das velas, que estava segurando a lâmpada de neón amarrada no chão. Este súdito levou um safanão de Grão Velão, que gritou: “Ele fica. E você sai daqui. O mais depressa possível”. E a capela ficou vazia, apenas com Grão Velão, que exibia sua chama robusta, mas que, trêmula, era ofuscada pelo brilho intenso, equilibrado e perene do prisioneiro, a lâmpada de neón. Grão Velão não entendia direito qual o combustível da luminosidade do prisioneiro. Só imaginava, e com certa dose de pessimismo, que aquela figura representava o futuro da iluminação. Em outras palavras, segundo a conclusão tacanha de Grão Velão, o futuro da empresa de energia térmica Gran Velada estava ameaçado. E se ninguém mais dependesse da luminosidade provocada pelas chamas das velas da comunidade da aldeia ao norte do centro do conglomerado municipal? E se o calor, que até hoje a Gran Velada era a pioneira do mercado em fornecer, tivesse outras fontes? A concorrência era algo que Grão Velão temia deveras. E se aquela lâmpada, aquela lâmpada de neón, substituísse, em todas as funções, o papel das velas perante a comunidade internacional? E quantas dessas lâmpadas de neón poderiam existir por aí? Era necessário, pensou ele, cortar o mal pela raiz. Com o prisioneiro ainda amarrado ao chão, Grão Velão chamou seu séquito de velas de volta para dentro da capela. Ordenou que todos fizessem silêncio absoluto, tendo em vista o grau de importância do presente momento, no qual seria revelado o veredito sobre o futuro sombrio da pobre coitada lâmpada de neón. E Grão Velão, tomando seu lugar de líder, esperava que todas as velas da comunidade ocupassem seu lugar na capela, que logo ficou entupida, já que as velas estavam curiosas por demais para saber das novidades. E Grão Velão iniciou seu discurso: “Meus caros amigos, velas queridas, com quem tive e ainda tenho o prazer de dividir a árdua, porém gratificante e necessária tarefa de fornecer luz e calor aos mais necessitados, dirijo a vocês algumas palavras de enorme complexidade, que contribuirão para a permanência de todos nós aqui por mais algum tempo, que permitirá que nossa comunidade de velas se mantenha realizando sua tarefa destinada pelo Sopro Espírito Santo das Velas”. Todas as velas, já caladas, permaneciam muito atentas às palavras de Grão Velão, que tinham o peso e o timbre de um líder nato. “Hoje, diante dos acontecimentos que nos arrebataram de surpresa, cheguei à conclusão, depois de muito pensar e refletir, que nossa comunidade está em perigo. Não só nós, míseras velas de cera, podemos chegar ao fim dos nossos tempos, como a função por nós exercida, a de distribuir calor e luz aos que precisam, de repente, pode ser realizada por outro qualquer. Hoje, queridos amigos, descobri que podemos ser facilmente substituídos. E não é isso que queremos”. Todas as velas, num côro de vozes uníssono, concordou com seu líder, emitindo um sonoro “NÃO”. “Esta lâmpada, meus caros, representa o futuro sombrio, o horizonte que não podemos prever”. Grão Velão vociferava e apontava para a pobre coitada e amedrontada lâmpada de neón, que, apesar de estar tremendo de medo, mantinha o brilho de sua luminosidade na potência máxima, ofuscando as vistas de todos que para ela olhavam. E continuou com seu discurso de ódio: “Enquanto essas criaturas existirem, não estaremos seguros. A qualquer momento, podemos ser extintos por uma horda de lâmpadas de neón vindas de todos os lugares, para acabar com a nossa raça. E não é isso o que queremos”. E toda a comunidade de velas, numa só voz uníssona, gritou: “NÃO”. E Grão Velão seguiu com suas palavras ao público: “Não temos tempo a perder. É necessário tomar uma ação enérgica, a fim de proteger o senso de conforto e tranquilidade dos nossos. É preciso que eliminemos quaisquer resquícios dessas forças obscuras que não sabemos de onde vem. É preciso dar fim a isso tudo, aqui e agora”. E Grão Velão foi aplaudido e ovacionado, fazendo a capela estremecer com tamanho alvoroço. A comunidade de velas de cera havia compreendido o recado. Todos começaram a gritar em conjunto: “Enforca, enforca, enforca, enforca”. E Grão Velão, assim que a multidão se acalmou minimamente, voltou a falar: “ A voz do povo é a voz de Deus. Se é a vontade e o desejo de todos que essa lâmpada seja enforcada, então que assim seja”. E numa salva de palmas ensurdecedora, a lâmpada, a pobre coitada lâmpada de neón foi levada para o lado de fora da capela, onde se lhe amarraram uma corda no soquete, lugar que mais se assemelhava a um pescoço. Quando menos se percebeu, a lâmpada, a pobre lâmpada de neón, já estava enforcada, estraçalhada e com seus cacos jogados pelo chão. Há ainda quem tenha observado o gás azulado da extinta lâmpada se espalhar pelos ares e sendo levado pelos ventos, qual um espírito que abandona o corpo após sua morte. E Grão Velão, assim como seus súditos, acreditam ter feito o melhor para a sobrevivência de sua comunidade. O futuro é perigoso, incalculável e imprevisível. E que assim continue, pensou Grão Velão, para toda a infinidade dos tempos.

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