ENSAIO SOBRE A SURPRESA!

ENSAIO SOBRE A SURPRESA

Imagine você sentado num dos oitocentos lugares do Teatro Municipal, assistindo a uma ópera lindíssima, vinda diretamente da companhia sinfônica dos Países Baixos, sob a regência de um maestro norte americano, ao som de Wolfgang Amadeus Mozart. Agora imagine que, apesar de o ingresso custar de trezentos a quinhentos reais, você não pagou nada porque o seu vizinho do andar de baixo ganhou na promoção da rádio cultura mas não ia usar e lhe ofereceu e você pensou “Se custa tão caro, deve ser bom. Se estou pagando nada, porque não?” Ainda que muitos não admitam, esse raciocínio é bastante corriqueiro. Ora, quem nunca ouviu aquela expressão que de tão usual quase já se tornou um jargão popular, no qual se diz que de graça até injeção na testa? O fato é que o empreendimento da cortesia é bastante difundido entre aqueles que, por uma razão ou outra, gostam de um entretenimento gratuito, mesmo que não saibam do que se trata. E, assim, voltamos ao rumo inicial do ensaio, que diz respeito a surpresa em si. Imagine, então, que você está lá sentado numa das poltronas do Teatro Municipal e a ópera já começou e você está achando um pouco chato. O movimento da sinfonia praticamente te embala para um sono bem gostoso. Mas você resiste. Afinal, você está no Teatro Municipal, no meio de pessoas potencialmente importantes e endinheiradas, que supostamente pagaram de trezentos a quinhentos reais no ingresso (não levemos em conta o fato de que essa sessão é exclusiva para assinantes do jornal e ouvintes da rádio que ganharam os ingressos). Você está sentindo certa importância no meio daquelas pessoas bem vestidas. Vestiu sua melhor camisa combinando com a sua melhor calça, calçou o seu melhor sapato com a sua melhor meia e a melhor cueca e assim por diante. Os violinos, acompanhados pelos violoncelos e contrabaixos, entoam uma melodia bastante inebriante. A percussão suave dá ao sonoro movimento uma sensação de batimentos cardíacos bastante desacelerados. Ao fundo, uma soprano entoa uma nota aguda em ré sustenido, que mais parece um apito do trem bem distante. Aquele apito que se confunde com algum som do inconsciente, que te leva diretamente para um sono profundo. E de repente, você descobre que está dormindo, afundado na cadeira semi confortável do teatro municipal, com o pescoço pendendo para o lado esquerdo, quase babando. E se estivesse acordado, você descobriria que os outros setecentos e tantos espectadores encontram-se na mesma situação, de sono profundo. Ao som da música suave e embalante, você vai longe nos sonhos mais esquisitos. Você está na corte de Luis XV, ao lado de nobres com perucas brancas e perfume francês. Quem está regendo a orquestra é ninguém menos que Mozart. O sr. Stradivarius comanda o côro de violinos e a madame Callas canta lindamente o seu mais agudo tom. De repente, BLANBLAN, um rompante de som estrepitante com o auxílio da percussão invade a sala e você acorda de seu sonho esquisito. As pessoas na platéia do Teatro Municipal olham umas para as outras, tentando disfarçar o recente susto, limpando a baba do canto da boca, massageando o pescoço e se ajeitando na cadeira. Um susto musical. Uma contradição sonora. Um paradoxo melódico e percussivo. Uma surpresa sinfônica. Sabia, aliás, que esse recurso era bastante utilizado para manter os nobres da corte acordados nas apresentações de ópera e música clássica? No teatro é a mesma coisa. Muitas vezes o espectador dorme na platéia e então é preciso que algo aconteça para que ele acorde. Um grito da atriz ou um cutucão da namorada ou o barulho da pipoca sendo mastigada ou o telefone celular tocando no seu bolso. Tudo isso não passa de uma grande surpresa.

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